Marianna Brennand: “A vergonha da violência não deve ser nossa, mas do abusador”

Em entrevista, a diretora de "Manas" comenta o processo de pesquisa e produção do filme e faz um retrato da sociedade atual

May 14, 2025 - 18:22
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Marianna Brennand: “A vergonha da violência não deve ser nossa, mas do abusador”

​Manas, primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Marianna Brennand, mergulha com coragem em uma realidade brutal: a violência sexual contra meninas na Ilha do Marajó, no Pará. Inspirado em uma década de pesquisas e relatos reais, o filme acompanha Marcielle, uma adolescente de 13 anos que, ao atingir a puberdade, vê sua infância ruir diante de abusos silenciosos dentro e fora de casa. 

O maior desafio da produção foi contar essa história sem recorrer a cenas explícitas: “Meu desejo era gerar empatia para que o espectador pudesse se colocar no coração e na alma da garota. Mas escolhi fazer isso com delicadeza, respeitando nossos corpos e todas as mulheres envolvidas”, diz. 

O drama se constrói, portanto, a partir de uma imersão sensorial que evidencia a complexidade de um problema que não atinge apenas aquela comunidade, mas o mundo todo. Para isso, a direção de fotografia valoriza como a vastidão da natureza é, ao mesmo tempo, maravilhosa e opressora – sempre refletindo a situação de cada um. A trilha sonora discreta e os longos silêncios reforçam a sensação de impotência e de angústia. Já a câmera, que acompanha o rosto e os gestos das vítimas, nos faz sentir seus desalentos e angústias.

“Meu desejo era gerar empatia para que o espectador pudesse se colocar no coração e na alma da garota. Mas escolhi fazer isso com delicadeza, respeitando nossos corpos e todas as mulheres envolvidas
“Meu desejo era gerar empatia para que o espectador pudesse se colocar no coração e na alma da garota. Mas escolhi fazer isso com delicadeza, respeitando nossos corpos e todas as mulheres envolvidas”, diz a diretoraReprodução/Reprodução

“É raro encontrar uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de abuso, pois vivemos em uma sociedade patriarcal, machista e misógina. Pessoas do mundo todo chegam para mim e dizem que também são manas – em Istambul, Cuba, Espanha, França, Estados Unidos… Enquanto existir uma mulher passando por qualquer tipo de violência, precisamos quebrar os silêncios.” 

A protagonista não é retratada apenas como vítima, já que ela tenta, ao máximo, resistir e lutar por um futuro diferente. E isso acontece a partir da figura da policial Aretha, interpretada por Dira Paes. A construção da personagem foi baseada em pessoas como o delegado Rodrigo Amorim e a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, reconhecida por seu trabalho por melhores condições às crianças e adolescentes na região. 

“Esse papel representa o Estado e vem para contar que existem seres humanos iluminados que, por muitas vezes, usam seus próprios recursos para fazer justiça. Isso porque muitos locais no Marajó não têm abrigo e, quando acontece a denúncia, se o juiz não der voz de prisão, a criança não pode voltar para casa porque pode sofrer ainda mais”, explica Marianna. “A própria vítima é prejudicada. Conselheiros tutelares já me falaram que já levaram crianças para suas próprias casas e dividem os itens de seus filhos.” Premiado mais de 20 vezes desde sua première mundial no Festival de Veneza, estreia nos cinemas em 15 de maio. 

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Abaixo, confira a entrevista completa com a diretora:

CLAUDIA: Como foi pra você fazer um filme sobre violência sem mostrar, de fato, a violência?

Essa foi a única maneira possível. Foi o maior desafio do filme. Meu desejo era gerar empatia para que quando o espectador assistisse ao filme, conseguisse se colocar no coração e na alma dessa menina. E eu acredito no caminho da delicadeza, do afeto. E não quis fetichizar a violência – a partir do momento que a gente mostra ela, eu estaria assinando embaixo. E ainda mais como uma diretora mulher, produtora, co-roteirista, tendo a oportunidade de contar uma história sobre o feminino, queria fazer isso com delicadeza.

Eu tinha consciência desde o início que queria trabalhar com uma menina de 13 anos. Então, sabia que teria que ter muito cuidado e muito respeito com essa menina – e isso significa não colocá-la pra viver situações violentas e situações abusivas. 

​Manas é o primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Marianna Brennand
​Manas é o primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Marianna BrennandLeo Aversa/Divulgação

CLAUDIA: Geralmente falamos que as meninas são “maduras para sua idade”, quais as consequências que isso traz?

Essa é uma questão muito complexa. Dependendo da camada social, muitas vezes elas têm que trabalhar e são adultizadas muito rápido. Mas isso, somado à erotização do corpo de uma criança, foi um dos princípios guiadores da construção do filme. Ela é uma menina, ela tem 13 anos. Nada justifica esse abuso.

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Talvez se esse filme fosse conduzido por um homem, ele poderia ter um plano que você vê ela saindo do rio com a camisa molhada, marcando o contorno do corpo – quase para justificar esse olhar machista do abusador. E, para mim, era importante que você olhasse ela do começo ao fim como uma criança.

CLAUDIA: Como foi o processo de produção?

O filme surgiu há pouco mais de 10 anos, quando eu soube pela Fafá de Belém dos casos de exploração sexual de crianças e mulheres na ilha do Marajó, que é a base de construção da história. Eu não fazia ideia e fiquei muito impressionada. Foi como um chamado. O primeiro desejo foi fazer um documentário de denúncia, mas entendi que isso era impossível, já que eu teria que entrevistar essas pessoas e pedir para elas contarem essas histórias – e isso seria uma segunda violência. Entendi que a única saída era através da ficção. E foi assim que Manas nasceu.

CLAUDIA: E como foi o processo de pesquisa?

A maior parte desses 10 anos foi de pesquisa e de imersão. Foram quase 8 anos de idas ao Marajó, conversas com conselheiros tutelares, psicólogos e pessoas que trabalham na região acolhendo essas crianças. Sempre que surgia algum ponto no roteiro de dúvida, acionava essas pessoas. Também fiz consultoria com o psicanalista e com o psicólogo para entender as consequências do trauma.

CLAUDIA: No Sul e Sudeste costumamos falar sobre direitos das mulheres a partir de salários igualitários e a desigualdade em empresas. Mas como você percebe essa desigualdade ao redor do Brasil?

Em algumas esferas, temos o privilégio de lutar por igualdade de direito, igualdade salarial, lutar para ocupar os mesmos cargos e esferas de poder. Mas as mesmas mulheres que estão lutando por isso estão sofrendo em casa abusos psicológicos, morais, físicos e financeiros. E isso é uma realidade não só do Brasil. Enquanto existir uma mulher passando por qualquer tipo de violência, precisamos quebrar os silêncios. 

É muito raro uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de abuso e isso é um absurdo. Vivemos em uma sociedade machista, patriarcal, misógina. Pessoas do mundo todo chegam para mim e dizem que também são manas – em Istambul, Cuba, Espanha, França, Estados Unidos…

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​Manas é o primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Marianna Brennand
​Manas é o primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Marianna BrennandLeo Aversa/Divulgação

CLAUDIA: A violência não é dita durante o filme, mas as pessoas sabem que ela está acontecendo. Como mudar essa realidade?

Espero que o filme funcione como um despertar para nós, mulheres, porque muitas vezes vivemos alguns tipos de violência que nem mesmo a gente percebe. A vergonha do abuso tem que mudar de lado, ela não é nossa. Nem a vergonha e nem a culpa. E isso faz com que a gente, quando sofre a violência, não tenha a coragem de falar.

A vergonha é do abusador. Eu encontrei relatos de mulheres que viveram isso por gerações. Isso também é algo que precisa mudar – precisamos conseguir colocar esses homens na cadeia.

CLAUDIA: Como ficou o seu emocional durante esse processo? 

Nunca mais fui a mesma, de fato. Não só por ter escutado essas histórias, mas por ter estado lá com o meu corpo, entendendo a fragilidade e a vulnerabilidade de uma menina que está em uma casa ao longo desse rio Tajapuru, distante, quilômetros de uma próxima casa, com água em torno dessa casa, tentando fugir. Foi muito difícil imaginar que tem uma mulher, uma criança passando por isso. 

A gente ir em profundidade e retratar de fato a complexidade dessas relações violentas, principalmente quando o abuso sexual e a exploração sexual estão envolvidas. Eu saí uma pessoa muito mais forte, muito melhor e muito decidida. Posso dizer que, cada vez que ouvia uma história, me dava mais força para lutar contra isso.

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CLAUDIA: A figura da Dira Paes é muito importante. Quem são essas pessoas que fazem justiça?

Ela representa o Estado e os direitos humanos. Também representa como existem seres humanos iluminados que lutam com suas próprias vidas e seus próprios recursos para salvar essas crianças. Ela é inspirada na irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, uma referência na luta pelos direitos humanos.

Muitas cidades no Marajó não têm abrigo quando acontece uma situação de denúncia. Se o juiz não der voz de prisão ou não manter esse homem na cadeia, essa criança não pode voltar para casa. Nesse sentido, ouvi histórias de conselheiros tutelares que levaram essas crianças para suas próprias casas e dividiram a comida e o remédio dos filhos. Aretha é a humanidade de todos nós diante de uma situação de violência.

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