Lições de UX que aprendi com a minha viagem para o Japão

Um mergulho em design invisível, funcionalidade e beleza.Templo Tenryu-jiEm outubro de 2023, eu realizei a minha tão sonhada viagem à terra do sol nascente. Uma viagem que planejava há anos e, ao mesmo tempo em que estava muito empolgado para ir, também estava nervoso.Passar um período em um lugar onde você não fala nem entende a língua, com uma cultura tão diferente, parecia desafiador — mas, no fim, me trouxe uma série de novas perspectivas.Uma das muitas gratas surpresas do Japão foi o fato de, durante toda a viagem, me deparar com experiências muito satisfatórias e bem planejadas, que carregam o Design em sua essência. Isso fez com que minha viagem tivesse um total de zero perrengues.Esses dias, revendo as fotos da viagem e relembrando o quão divertido e impressionantemente fácil foi viajar pelo Japão, percebi o quanto isso está ligado à forma como eles enxergam experiência do usuário como uma tradição cultural.O Japão tem uma cultura de hospitalidade e acolhimento chamada Omotenashi, que vem da junção de omote (face, aparência) e nashi (nada), indicando um serviço que vai além das aparências, sendo puro e genuíno. Omotenashi costuma ser traduzido como “cuidar de todo o coração” e tem como objetivo oferecer a melhor experiência possível para convidados; seja em estadias, restaurantes, comércio ou qualquer prestação de serviço.Então vou mostrar para vocês como foi a minha experiência na prática, através dos valores fundamentais do design japonês: harmonia, funcionalidade e atenção aos detalhes — e como podemos levar esses aprendizados para a construção dos nossos produtos.Placa indicando desembarque doméstico à 530m­1. Antecipação das necessidades e pregnânciaAntes de chegar ao Japão, é recomendado preencher um questionário no site Visit Japan. Isso já demonstra como eles antecipam possíveis más experiências. Esse questionário praticamente resolve todo o processo de entrada no país.Ao sair do avião, você já se depara com placas grandes, com ícones e legendas em inglês e japonês, indicando claramente para onde seguir; algumas, inclusive, informam a distância até o próximo ponto.Na imigração, a sinalização é igualmente clara, com bandeiras, ícones e setas enormes direcionando nativos e visitantes. Ao pegar a fila, há placas com desenhos de passaporte indicando a documentação necessária.Você entrega o passaporte, a atendente escaneia, baixa todas as informações do Visit Japan e pronto, você já pode seguir viagem.Esse tipo de sinalização se repete por todo o país, e são experiências simples que demonstram o quanto eles se preocupam em entender as preferências e os problemas das pessoas, a fim de oferecer um serviço diferenciado.Exemplo disso são os caixas eletrônicos e as máquinas de bilhetes de trem, a maioria com suporte para copos, guarda-chuvas e até muletas.Suporte de copo e bengala­2. Uso apropriado de números, letras, cores e íconesA maioria dos estabelecimentos, museus e parques utilizam letras, cores e ícones para se comunicar. Funciona tão bem que, muitas vezes, você nem sente que não entende japonês.Sinalização com ilustrações de possíveis ataques das renas em NaraAs estações de trem e metrô, por exemplo, são sinalizadas com letras (para as linhas) e números (para as estações), além de cores diferentes para cada linha. Placas mostram qual o sentido do trem, se está indo ou voltando, e isso torna a experiência muito mais acessível.Sinalização das estações de metroAplicativos como o Google Maps são ainda mais detalhados no Japão, indicando qual saída usar na estação, o horário exato do trem e até a plataforma correta, sempre com o mesmo sistema de letras e cores.Os mercadinhos de conveniência (os famosos konbini) são muito comuns, e você pode comprar comida pronta (que são deliciosas) e pedir para esquentar nos fornos da loja. Para facilitar o processo, cada embalagem vem com um número que corresponde ao tempo exato de aquecimento do alimento e nos fornos você só precisa digitar o mesmo número da embalagem.Comida com etiqueta e marcação do forno­3. Representações visuais detalhadas em apoio ao entendimento de uso e gestão de expectativasAs instruções ilustradas para abrir embalagens ou preparar produtos são sempre presentes e muito eficazes.Montar um oniguiri só olhando as ilustrações é uma experiência divertida e funcional.O uso de ilustrações (sempre muito fofas) para comunicar informações do dia a dia é frequente, facilitando a compreensão, inclusive entre os próprios japoneses. Até mesmo instruções básicas, como comer um sushi, podem vir ilustradas para orientar a maneira correta de consumo.Instruções para comer sushiNos restaurantes, réplicas em cerâmica dos pratos ficam expostas nas vitrines, ajudando o cliente a visualizar a porção, os ingredientes e escolher com segurança. Uma gestão de expectativas visual e objetiva.Replicas de pratos em cerâmica nas vitrines dos restaurantes­4. Aplicação de tecnologia diretamente ligada à melhora da experiênciaDurante minha viagem ao Japão, uma coisa ficou

May 5, 2025 - 14:05
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Lições de UX que aprendi com a minha viagem para o Japão

Um mergulho em design invisível, funcionalidade e beleza.

Três gueixas de frente para o templo Tenryu-ji
Templo Tenryu-ji

Em outubro de 2023, eu realizei a minha tão sonhada viagem à terra do sol nascente. Uma viagem que planejava há anos e, ao mesmo tempo em que estava muito empolgado para ir, também estava nervoso.

Passar um período em um lugar onde você não fala nem entende a língua, com uma cultura tão diferente, parecia desafiador — mas, no fim, me trouxe uma série de novas perspectivas.

Uma das muitas gratas surpresas do Japão foi o fato de, durante toda a viagem, me deparar com experiências muito satisfatórias e bem planejadas, que carregam o Design em sua essência. Isso fez com que minha viagem tivesse um total de zero perrengues.

Esses dias, revendo as fotos da viagem e relembrando o quão divertido e impressionantemente fácil foi viajar pelo Japão, percebi o quanto isso está ligado à forma como eles enxergam experiência do usuário como uma tradição cultural.

O Japão tem uma cultura de hospitalidade e acolhimento chamada Omotenashi, que vem da junção de omote (face, aparência) e nashi (nada), indicando um serviço que vai além das aparências, sendo puro e genuíno. Omotenashi costuma ser traduzido como “cuidar de todo o coração” e tem como objetivo oferecer a melhor experiência possível para convidados; seja em estadias, restaurantes, comércio ou qualquer prestação de serviço.

Então vou mostrar para vocês como foi a minha experiência na prática, através dos valores fundamentais do design japonês: harmonia, funcionalidade e atenção aos detalhes — e como podemos levar esses aprendizados para a construção dos nossos produtos.

Placa do aeroporto de Osaka indicando desembarque doméstico à 530m
Placa indicando desembarque doméstico à 530m

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1. Antecipação das necessidades e pregnância

Antes de chegar ao Japão, é recomendado preencher um questionário no site Visit Japan. Isso já demonstra como eles antecipam possíveis más experiências. Esse questionário praticamente resolve todo o processo de entrada no país.

Ao sair do avião, você já se depara com placas grandes, com ícones e legendas em inglês e japonês, indicando claramente para onde seguir; algumas, inclusive, informam a distância até o próximo ponto.

Na imigração, a sinalização é igualmente clara, com bandeiras, ícones e setas enormes direcionando nativos e visitantes. Ao pegar a fila, há placas com desenhos de passaporte indicando a documentação necessária.

Você entrega o passaporte, a atendente escaneia, baixa todas as informações do Visit Japan e pronto, você já pode seguir viagem.

Esse tipo de sinalização se repete por todo o país, e são experiências simples que demonstram o quanto eles se preocupam em entender as preferências e os problemas das pessoas, a fim de oferecer um serviço diferenciado.

Exemplo disso são os caixas eletrônicos e as máquinas de bilhetes de trem, a maioria com suporte para copos, guarda-chuvas e até muletas.

Suporte laranja de copo e bengala em uma máquina sacar dinheiro ATM
Suporte de copo e bengala

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2. Uso apropriado de números, letras, cores e ícones

A maioria dos estabelecimentos, museus e parques utilizam letras, cores e ícones para se comunicar. Funciona tão bem que, muitas vezes, você nem sente que não entende japonês.

Placa com ilustrações indicando ataque das Renas e uma foto de uma das Renas ao lado
Sinalização com ilustrações de possíveis ataques das renas em Nara

As estações de trem e metrô, por exemplo, são sinalizadas com letras (para as linhas) e números (para as estações), além de cores diferentes para cada linha. Placas mostram qual o sentido do trem, se está indo ou voltando, e isso torna a experiência muito mais acessível.

Placa de estação de metro indicando o sentido de H17 para H01
Sinalização das estações de metro

Aplicativos como o Google Maps são ainda mais detalhados no Japão, indicando qual saída usar na estação, o horário exato do trem e até a plataforma correta, sempre com o mesmo sistema de letras e cores.

Os mercadinhos de conveniência (os famosos konbini) são muito comuns, e você pode comprar comida pronta (que são deliciosas) e pedir para esquentar nos fornos da loja. Para facilitar o processo, cada embalagem vem com um número que corresponde ao tempo exato de aquecimento do alimento e nos fornos você só precisa digitar o mesmo número da embalagem.

Foto de uma embalagem de comida ao lado de uma foto da placa indicando como usar o forno
Comida com etiqueta e marcação do forno

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3. Representações visuais detalhadas em apoio ao entendimento de uso e gestão de expectativas

As instruções ilustradas para abrir embalagens ou preparar produtos são sempre presentes e muito eficazes.

Montar um oniguiri só olhando as ilustrações é uma experiência divertida e funcional.

O uso de ilustrações (sempre muito fofas) para comunicar informações do dia a dia é frequente, facilitando a compreensão, inclusive entre os próprios japoneses. Até mesmo instruções básicas, como comer um sushi, podem vir ilustradas para orientar a maneira correta de consumo.

Plaquina de mesa indicando como comer sushi
Instruções para comer sushi

Nos restaurantes, réplicas em cerâmica dos pratos ficam expostas nas vitrines, ajudando o cliente a visualizar a porção, os ingredientes e escolher com segurança. Uma gestão de expectativas visual e objetiva.

Vitrine com réplicas de pratos em um restaurante
Replicas de pratos em cerâmica nas vitrines dos restaurantes

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4. Aplicação de tecnologia diretamente ligada à melhora da experiência

Durante minha viagem ao Japão, uma coisa ficou muito clara para mim: tecnologia, quando bem aplicada, não precisa ser exuberante ou futurista. Ela precisa resolver problemas reais, de forma intuitiva e quase invisível.

Em algumas lojas de roupa, por exemplo, o processo de pagamento é surpreendentemente simples e eficiente. Você não precisa escanear peça por peça: basta colocar a sacola com todas as roupas em uma caixa no caixa automático, e o sistema identifica instantaneamente a quantidade de itens, os modelos e os valores de cada um. Em questão de segundos, o total aparece na tela, pronto para pagamento. Esse tipo de solução reduz filas, elimina erros humanos e torna a experiência de compra muito mais ágil e fluida — especialmente em um país onde a praticidade e o respeito ao tempo do outro são tão valorizados.

Outro exemplo icônico são as privadas japonesas. Pode parecer curioso falar disso em um artigo sobre UX, mas poucas coisas me ensinaram tanto sobre design centrado no usuário quanto elas. Controle de temperatura do assento, jatos de água ajustáveis, sons de fundo para preservar a privacidade e até sistema automático de abertura de tampa. Tudo pensado para proporcionar conforto, higiene e privacidade máxima. E o melhor: de forma intuitiva, mesmo para quem não fala japonês.

Foto em close dos controles de uma privada japonesa
Privadas japonesas

Além desses, há pequenas soluções espalhadas pelo cotidiano: elevadores com botão de “fechar porta” que realmente funciona, guarda-chuvas gratuitos e reutilizáveis disponíveis na entrada de lojas em dias de chuva. São soluções simples, mas com impacto real no bem-estar das pessoas. A lição aqui é clara:

A tecnologia deve estar a serviço das pessoas, não o contrário.

UX não é só sobre apps e interfaces digitais. É sobre tornar a vida das pessoas mais fácil, agradável e fluída, usando a tecnologia de forma relevante e respeitosa.

Aliás que saudade dos cruzamentos com sinais sonoros diferentes para deficientes visuais, é um som de passarinho que fica na sua cabeça pra sempre.https://medium.com/media/13d5e4196cff2eaee633684640310a93/href

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5. Beleza e atenção aos detalhes importam (e muito)

Outra grande lição que trouxe do Japão é o valor dado à beleza, à harmonia e aos pequenos detalhes. Isso vai além da estética: é uma filosofia cultural de respeito e cuidado com o outro.

As coisas são sempre apresentadas de forma agradável: embalagens simples e impecáveis, pratos montados com harmonia, bilhetes escritos à mão em pequenas compras. O detalhe não é supérfluo. Ele agrega valor e acolhimento.

Os espaços públicos refletem isso: jardins urbanos bem cuidados, sinalização discreta e eficaz, vitrines minimalistas e organizadas. Há uma busca constante pelo equilíbrio entre funcionalidade e beleza, algo que muitas vezes negligenciamos no digital e no físico.

Foto de um jardim com árvores e um pequeno riacho
Jardim Kenroku-en em Kanazawa

É uma lição importante para nosso dia a dia como designers. Muitas vezes, ao trabalhar com Design Systems, temos a tendência em deixar de gastar tanto tempo com detalhes. Mas um botão bem posicionado, uma microanimação, um espaço de respiro ou um feedback contextualizado podem transformar a relação do usuário com um produto ou serviço. Às vezes pode parecer uma besteira, mas não é.

O detalhe comunica, a beleza dá valor. E quando bem pensado, diz ao usuário: “eu me importo com você”. No Japão, isso está em todo canto. E para nós, designers, é um lembrete de que UX não termina na usabilidade. Beleza, simplicidade e cuidado suavizam até os pequenos aborrecimentos do dia a dia.

“Make beautiful things. Make things to be used. Eliminate everything that is unnecessary.”
 — Yanagi Sōetsu

Viajar para o Japão foi, para mim, mais do que conhecer templos, provar ramens ou andar de trem-bala. Foi uma verdadeira aula prática sobre como a experiência do usuário está nas pequenas coisas, nos detalhes quase invisíveis, na antecipação das necessidades e no respeito ao tempo, à individualidade e à cultura de cada pessoa.

O Omotenashi não é só uma tradição bonita — é uma mentalidade que coloca o outro no centro da experiência. E isso se reflete em cada serviço, produto e espaço por lá.

Como designers, podemos (e devemos) incorporar essa filosofia ao nosso trabalho. Não basta entregar um produto funcional: ele precisa ser acessível, acolhedor, esteticamente agradável e sensível às necessidades não ditas do usuário.

Que a simplicidade, o cuidado e a atenção ao detalhe do Japão sirvam como inspiração para criarmos experiências mais humanas, respeitosas e memoráveis — no digital e fora dele.

Referências

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Leitura adicional


Lições de UX que aprendi com a minha viagem para o Japão was originally published in UX Collective