Coleção de sobrevivências
A transformação da dor em criação, com o nascimento do projeto de escrita

Depois de parir minha filha e sentir a dor mais transformadora do mundo, fui ao quarto do hospital. Enquanto ela dormia, tomei um banho, me olhei no espelho, penteei os cabelos e fiz uma trança longa. Sentei com as pernas cruzadas em cima da cama e a amamentei. Terminei faminta. Era um hospital público e já tinha sido o jantar.
A enfermeira me disse que tinha pão. Eu pedi: traz quantos puder. Ela trouxe três pães com margarina e um chá exageradamente adoçado. O pão já meio velho. Rasguei com os dentes cada mordida numa fome de bicho. Em alguns minutos, não tinha nem pão nem chá doce. Terminei de comer, respirei fundo e olhei pra pequena ao meu lado: então vamos lá, filha.
A caminho da minha primeira viagem sozinha. Fobia de avião. Não precisava ir, mas queria. Ah, isso muda tudo. Não precisar, mas querer, já faz furacão na gente. O avião resolveu tremer. Turbulência não derruba avião, era meu mantra e minha convicção.
Intimamente pensava que seria punida por dar vazão ao desejo. Claro que seria punida. Alguma mulher não é punida quando dá vazão ao desejo? Turbulência não derruba avião. Nos fones de ouvido, tirei do podcast que estava ali como cama sonora. Coloquei uma música da minha adolescência. Olhei as nuvens e o céu azul. O avião tremendo. Sobrevivi tremida. Melhor balançar do que nunca sair do chão.
Depois de meses internada em casa me recuperando de uma doença, pude sair. Minha pele estava muito sensível e queimou fácil. Fiquei vermelhinha. Nada demais, apenas como ficam as crianças que brincam. Eu não podia brincar, pois estava doente. Mas o sol, gentil e generoso, veio me dar uma cor de futuro. Corada, o rosto alcançando o espelho. Eu estava em pé. Que menina bonita é você — lembro de dizer em voz alta.
Minha avó me acendia velas. Eu sinto sua falta e a falta de quem eu era refletida nos seus olhos. Sinto falta dela contar as minhas histórias e eu meio que lembrar meio que fingir. Sem minha avó, sou menos. Tenho menos mãos para carregar minhas fotografias. Tenho acendido vela pelas manhãs. Assopro mandando um recadinho bonito pra ela. Vó, você me vê cuidando bonito de mim?
Da tristeza profunda de um janeiro, brotou miúdo um projeto. Era dor o que eu sentia. Pensei: que seja de parto e não de morte. Algo precisava nascer. Convoquei-me: nasci escritora. Decisão quietinha sentada na grama. Estou olhando agora nos olhos dos meus livros. Estou olhando agora nos seus olhos, pois você está aí e me lê. Sobrevivemos.
Assine a newsletter de CLAUDIA
Receba seleções especiais de receitas, além das melhores dicas de amor & sexo. E o melhor: sem pagar nada. Inscreva-se abaixo para receber as nossas newsletters:
Acompanhe o nosso WhatsApp
Quer receber as últimas notícias, receitas e matérias incríveis de CLAUDIA direto no seu celular? É só se inscrever aqui, no nosso canal no WhatsApp.
Acesse as notícias através de nosso app
Com o aplicativo de CLAUDIA, disponível para iOS e Android, você confere as edições impressas na íntegra, e ainda ganha acesso ilimitado ao conteúdo dos apps de todos os títulos Abril, como Veja e Superinteressante.