Cinema: “Milton Bituca Nascimento” reflete sobre sucesso, reconhecimento e finitude de uma carreira
Neste documentário, a importância de Milton como representante da música negra se destaca como uma outra abordagem a nortear a estrutura narrativa através de falas potentes...

texto de João Paulo Barreto
Para Fernanda Montenegro, Milton Nascimento é o tradutor da imensidão das montanhas. E a precisão da fala da atriz define de maneira primordial a presença de Milton em nossa história musical brasileira dos séculos XX e XXI. Ao se propor fazer um recorte da vida do cantor carioca, mas de alma mineira, em “Milton Bituca Nascimento” (2025), a diretora Flavia Moraes escapou da armadilha do didatismo biográfico e cronológico que pode tornar enfadonho um documentário. E mesmo se atendo à estrutura formal narrativa com as falas de notórios entrevistados a salientar a importância do co-fundador do Clube da Esquina, Flavia capta exatamente a grandeza de seu símbolo de estudo a partir de sua despedida dos palcos.
Mantendo uma estrutura de road movie que acompanha Bituca em sua turnê de despedida, que passou por diversos países em 2022 e teve seu encerramento no Estádio do Mineirão (você leu aqui), “Milton Bituca Nascimento” traz falas de Spike Lee, Quincy Jones, Sergio Mendes, Herbie Hancock, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco, Criolo, Mano Brown, Esperanza Spalding, Simone, Maria Gadú e Djavan, dentre outros famosos a ratificar a importância de Milton. As falas, distante de qualquer preciosismo raso, abordam aspectos técnicos relacionados ao alcance vocal do cantor, seu apuro como compositor e o patamar mítico que sua presença representa no conceito do cancioneiro popular brasileiro.
Porém, apesar de fiel à citada estrutura narrativa que mantém em foco a repercussão de sua passagem pela Europa e pelos Estados Unidos há três anos, o filme traz preciosas inserções que abordam a infância descobridora de sons de Milton, quando, adotado por Dona Lílian, uma professora de música, e pelo sr. Zino, radialista, veio da Tijuca, no Rio de Janeiro, para a cidade de Três Pontas, em Minas Gerais. Na terra das montanhas, logo se encantou pelos sons dos trens e pelos ecos das cavernas em seus primeiros anos.
Na maturidade do garoto que ia crescendo e percebendo a malícia do mundo à sua volta, logo a percepção do racismo como presença perniciosa na sociedade brasileira se fez pesada, com sua mãe Lílian sofrendo a hipocrisia cruel do entorno a julgar um amor materno e incondicional. Na fala de Milton, esse eco da importância do afeto paterno e materno oriundo do casal que o adotou reverbera para seu próprio rebento, Augusto. Em uma conversa carinhosa captada pela lente de Flavia Moraes, o músico pergunta ao jovem como ele se sente sendo seu filho adotivo. A resposta, distante de qualquer pieguismo, emociona: “a pessoa mais amada do mundo”.
Neste documentário, a importância de Milton como representante da música negra se destaca como uma outra abordagem a nortear a estrutura narrativa através de falas potentes vindas de pessoas como Criolo e Mano Brown. Em outro momento, Gilberto Gil e o próprio Criolo refletem sobre a ideia da finitude de um artista em termos de carreira e de sua consequente imortalidade atrelada à sua música, outro ponto crucial da narrativa proposta pelo filme.
Com todas essas opções narrativas, “Milton Bituca Nascimento” consegue construir esse mosaico que reflete a identidade de uma figura ímpar de nossa música. E ao utilizar como pano de fundo a despedida dele dos palcos após décadas de uma construção constante dentro da nossa cultura, o filme ganha esse contorno essencial de fechamento. Um contorno de uma obra que não se propõe a dissecar completamente a história de seu símbolo de estudo, mas, sim, visitá-la a partir do olhar do seu dono e, ao mesmo tempo, mantê-lo vivo e com sua áurea evidenciada.
Nas imagens dos shows da última turnê em teatros de vários países construindo um crescente catártico e emocional que se encaminha para o derradeiro show de encerramento no Estádio do Mineirão, o filme segue balanceando depoimentos de Milton e de seus pares. As lembranças de sua trajetória destacam letras como as de “Clube da Esquina”, música de 1970 que, aqui, cantada ao lado dos irmãos Lô e Márcio Borges, entrega aspectos denunciatórios do período da podridão da ditadura militar no país.
E se a família Borges é citada aqui, é válido constatar “Milton Bituca Nascimento” como o fechamento precioso de uma trilogia cinematográfica não programada, que inclui “Toda Essa Água” (2023), filme de Rodrigo de Oliveira sobre Lô Borges, bem como “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina” (2024), filme de Ana Rieper, sobre o movimento musical mineiro.
Quando o maestro Wagner Tiso, parceiro de longa data de Milton, chora diante da ausência de palavras para definir quem é seu amigo, lágrimas semelhantes marejam nossos olhos.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador, e é autor de “Uma Vida Blues”, biografia de Álvaro Assmar.