“Piricrente” fitness: como a ignorância afeta mulheres evangélicas na academia
Mulheres evangélicas contornam barreiras morais e religiosas para praticar atividades físicas e ir à academia

Praticar a fé e o autocuidado, assim, de cara, não parecem questões antagônicas, especialmente se essa prática estiver relacionada ao exercício físico — atividade que costuma estar no topo das recomendações para se ter uma vida saudável, produtiva e longeva.
Para as mulheres cristãs, no entanto, não é tão simples assim: entre o modo de se vestir e a forma como o ambiente da academia é experimentado existe uma série de tabus que as afastam deste tipo de atenção com a saúde.
“É pecado, sim, se teu marido não sabe, eu falo: na academia se fica de quatro para fazer exercício para glúteos” — é esse tipo de comentário que a influenciadora e cantora gospel Kleide Valente, de 41 anos, costuma receber quando publica no Instagram os vídeos da “vasa fitness”, personagem que criou para combater percepções conservadoras sobre a prática de exercícios físicos.
“Vasa”, neste caso, é um neologismo, o feminino de “vaso”, objeto que costuma ser usado como alegoria para representar a relação entre as pessoas e o Deus cristão. Vale dizer que o comentário em questão foi enviado por uma mulher.
Mas, para apontamentos desse tipo, a resposta de Kleide costuma ser sarcástica e ácida, sem dar espaço para que opiniões como essa a afastem do seu propósito.
“Recebo muitos comentários maldosos, mesmo usando roupas mais tradicionais e fechadas, que muitos dizem ser ideais para a academia. Isso me afetava, mas agora não deixo que me influenciem. Tento levar a vida de forma leve, sem permitir que opiniões negativas me deixem mal”, ela diz.
A “vasa fitness”, sua personagem, costuma usar conjuntos de moda evangélica para ir à academia, compostos normalmente por uma calça legging com uma saia por cima e uma blusa com mangas que cobrem o ombro e o colo. Quando se trata dela mesma, pessoa física, Kleide prefere leggings e blusas usuais de treino.
“Para falar a verdade, eu não acho que exista uma roupa específica para uma mulher cristã usar na academia. Penso que o mais importante é a roupa ser confortável, sem ser vulgar. E para não ser vulgar, não é necessário usar apenas as chamadas ‘roupas gospel’. Há mulheres que se sentem muito bem usando legging com uma blusa mais soltinha por cima, ou até mesmo um conjunto de cropped com legging, por que não?”, afirma a influenciadora.
Ela também lembra que a relação da mulher com a roupa varia conforme a doutrina da igreja. Em algumas congregações, por exemplo, os protocolos de vestimenta não permitem que mulheres usem calça ou roupas que deixem os ombros à mostra, decotes que evidenciam o colo ou saias que tenham um comprimento acima do joelho; em outras, as regras são mais flexíveis. Para Kleide, seu estilo não afeta a relação com sua crença.
“Acredito que isso não interfira na minha forma de adorar a Cristo, nem na minha intimidade com Ele, e não faz com que eu me sinta menos cristã por isso”, afirma.
Mulheres evangélicas são chamadas de piricrentes

Os fiscais de pecado fazem plantão no perfil da influenciadora: se o exercício que tonifica o bumbum não pode, as roupas de moda evangélica também não costumam agradar. Mesmo se vestindo de forma apropriada para os moldes cristãos quando interpreta a “vasa fitness”, Kleide já foi chamada de “piricrente” — um trocadilho com “piriguete”.
Para a consultora de moda Thais Farage, que também pesquisa moda e gênero, esse tipo de episódio evidencia como não há um lugar confortável para o sexo feminino.
“As mulheres conservadoras sofrem muitas críticas, assim como aquelas que se vestem de maneira mais exposta. Até mesmo mulheres que não performam tanta feminilidade enfrentam críticas. Nunca vai existir um lugar que seja completamente confortável ou que funcione sem julgamentos”, afirma.
A moda modesta, de roupas que não realçam as formas do corpo feminino, faz sucesso no Brasil entre as mulheres evangélicas e, frequentemente, é associada ao público gospel, apesar de não ser uma tendência apenas dentro desse grupo. Thais destaca que esse tipo de vestimenta também está baseada em um arquétipo feminino que, muitas vezes, posiciona as mulheres em um lugar de culpa.
“O que noto é que a moda modesta, em certa medida, sacrifica o conforto. Num país quente como o Brasil, se vestir de forma tão coberta muitas vezes implica sentir calor. Além disso, reflete uma sociedade que sexualiza demais as mulheres, mas, por outro lado, impõe que elas se escondam para evitar o pecado. Isso cria um dilema entre o desejo de se sentir confortável e as exigências de um código moral conservador”, ressalta a pesquisadora.
Crente é fitness?

“Quem é crente pode fazer academia?” Essa é uma das sugestões de perguntas que aparecem no Google quando se pesquisa sobre cristãos e atividade física. Em alguns casos, mesmo que a vestimenta não seja o problema, algumas mulheres cristãs não se sentem confortáveis no ambiente tradicional do mundo fitness.
A administradora Geize Teodoro, de 33 anos, também pratica musculação e, em abril do ano passado, começou a frequentar a Holy Spirit (em português, “Espírito Santo”), uma academia com proposta cristã que funciona em Barueri, no interior de São Paulo.
“Fiquei interessada porque parece improvável encontrar um lugar com esse vínculo cristão. Infelizmente, e sem querer generalizar, muitas academias têm um ambiente com forte conotação de sensualidade e sexualidade, o que pode gerar desconforto. Quando falo para as pessoas que frequento uma academia cristã, elas geralmente ficam surpresas, muitas acham difícil imaginar que um ambiente fitness possa ter essa proposta”, ela diz.
No caso das mulheres, a OMS (Organização Mundial de Saúde) ressalta que a prática regular de exercícios físicos é fundamental para prevenir problemas de saúde, como hipertensão, diabetes e câncer de mama, além de ser uma importante aliada para enfrentar os desconfortos da menopausa. Para Geize, realizar esse autocuidado também é uma forma de exercer sua fé. “Precisamos cuidar do maior bem que temos, que é a nossa vida. Isso inclui cuidar do corpo, praticar atividades físicas e valorizar esse templo, que é nossa morada espiritual”, afirma.
Apesar de se definir como uma academia cristã, o público da Holy Spirit é diverso, segundo o proprietário, Leonardo Vinicius, e recebe pessoas de diferentes crenças e orientações sexuais. Mas a rotina é diferente de uma academia tradicional: a playlist que dá o tom da malhação só toca música gospel e a cada três horas o “relógio de oração” dispara, então todo mundo se reúne para um minuto de prece.
Quanto às roupas, ele diz que não há uma regra sobre o que pode ou não, mas afirma que entre os clientes existe um consenso sobre o que é inapropriado, o que Leonardo descreve como “peças que sensualizam demais o corpo, como leggings ou shorts muito curtos que expõem excessivamente a mulher”.
“Entendemos que as pessoas são livres. Contudo, pelo propósito da academia, os frequentadores geralmente adotam vestimentas apropriadas. Se alguém chama muita atenção pela roupa, pode acabar se sentindo desconfortável no ambiente. Algumas pessoas já chegaram com roupas consideradas inadequadas, mas, ao longo do tempo, se transformaram”, afirma.
Segundo o proprietário, cerca de 68% da clientela é feminina. Para Geize, é a “atmosfera divina” que torna o espaço acolhedor para as mulheres e para suas famílias — a academia também tem espaço kids, então é comum que as crianças acompanhem as mães durante os exercícios.
“O ambiente é diferente até na questão das roupas. Dentro de um contexto cristão, nos preocupamos com a vestimenta, o local acaba inspirando um cuidado maior e eu tento me vestir de forma modesta, evitando decotes ou roupas muito curtas. Isso me traz mais conforto e liberdade durante os treinos”, ela conta.
Em Feira de Santana (BA), onde Kleide Valente mora, não existe nenhuma academia desse tipo, mas a influenciadora diz que toparia malhar em um espaço assim. “Se a proposta for semelhante ao que já estou acostumada em termos de treinos e estrutura, eu frequentaria. Mas não trocaria uma academia comum só pelo foco nas músicas”, afirma.
A Holy Spirit não é a única academia cristã no Brasil, mas ainda não é possível dizer que exista uma tendência em curso de espaços de treino voltados a esse público. O que há, de fato, é um crescimento exponencial da população evangélica no Brasil: segundo o IBGE, esse é o segmento religioso que mais cresceu no país nos últimos 30 anos e representa 22% da população brasileira. Dentro desse grupo, a maioria é formada por mulheres — muitas delas, visivelmente interessadas em seguir a palavra em Efésios 5:29: “Ninguém jamais odiou o seu próprio corpo, antes o alimenta e dele cuida”.
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