30° Festival É Tudo Verdade: “Rua do Pescador, n° 6”, de Bárbara Paz, revisita a tragédia das enchentes no RS
Entre água, lama e destroços, personagens falam sobre perder seus bens mais importantes, sobre a destruição de suas casas, sobre a reconstrução de memórias e sobre as possibilidades de futuro

texto de Renan Guerra
No mesmo final de semana em que “Rua do Pescador, n° 6” foi exibido no 30° Festival É Tudo Verdade, a chuva caia sobre São Paulo, isso após a região do ABC paulista ficar alagada durante a semana anterior. Nas notícias, destaques para os alagamentos em diferentes regiões do Ceará e sobre a forte chuva que atingia o Rio de Janeiro. O recente documentário de Bárbara Paz se restringe às chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em junho de 2024, com um foco específico na Ilha da Pintada, no rio Guaíba, em Porto Alegre. Mesmo assim, ao focar suas lentes sobre a tragédia gaúcha, o filme nos relembra que a crise climática segue em curso e que os registros ali feitos são apenas a marca de cenas que parecem se repetir mais e mais a cada semana, em diferentes regiões do mundo.
Diretora do excelente documentário “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou” (2019), Bárbara Paz embarcou nesse segundo projeto como diretora sem um planejamento real. Diante da tragédia que assolava o Rio Grande do Sul, a atriz, diretora e produtora, que nasceu em Campo Bom, na região metropolitana de Porto Alegre, decidiu viajar para o Sul e documentar as possibilidades que fosse encontrando pelo caminho. Reunindo uma equipe diminuta de profissionais gaúchos de cinema, Barbára desenvolveu um trajeto que buscava o encontro com pessoas em meio ao caos e a destruição. Mais do que criar uma narrativa de melodrama, “Rua do Pescador, n° 6” busca humanizar esses personagens e apresentá-los para além da tragédia.
Entre água, lama e destroços, esses personagens falam sobre perder seus bens mais importantes, sobre a destruição de suas casas, sobre a reconstrução de memórias e sobre as possibilidades de futuro – há, por exemplo, uma repetição de falas de personagens que refletem sobre a não possibilidade de sair daquele espaço de terra, num importante reforço de uma identidade territorial. Com isso, o documentário consegue construir um panorama afetivo de memórias, lembranças e construção da identidade desses personagens. Eles limpam seus documentos, procuram fotos perdidas, remontam memorabílias quebradas e relembram para a câmera as memórias de seus familiares e amigos que cresceram e se desenvolveram naquela região. Há, inclusive, um interessante paralelo entre a enchente mais recente com a enchente de 1941, uma das grandes catástrofes de Porto Alegre, que é colocada lado a lado com a enchente atual em uma justaposição inteligente das imagens P&B.
A fotografia em preto e branco é, aliás, uma interessante escolha, que propicia um certo padrão estético que nos conecta de outra maneira com esses personagens, fugindo do padrão jornalístico que marcou a narrativa das enchentes, criando assim uma possibilidade bem mais conectada ao potencial da sala de cinema. Isso é resultado do trabalho de direção de fotografia de Bruno Polidoro, importante nome do novo cinema gaúcho, com créditos em longas como “Homens de Barro” (2025) e “A Primeira Morte de Joana” (2023). Se nessas perspectivas estéticas ao se filmar uma tragédia existe sempre uma linha tênue entre captar essas histórias ou explorá-las de forma gratuita; em “Rua do Pescador, n° 6” o que temos é um filme que deixa seus personagens confortáveis e se coloca ao lado deles de igual para o igual. Os moradores da Ilha da Pintada buscam a câmera do filme, eles querem contar suas histórias e dividir suas dores, é a partir desse contato que eles também entendem perspectivas próprias sobre identidade, resiliência e vida em comunidade.
Há ainda uma preocupação constante de Bárbara Paz e sua equipe em deixar claro a complexidade do que enfrentamos na tela: a destruição causada pela natureza vem de um arcabouço de razões, incluindo a exploração irrestrita dos bens naturais, o desrespeito a espaços de preservação ambiental e a especulação imobiliária. Tudo isso é amarrado por inserções radiofônicas que nos demonstram esse lado mais jornalístico da narrativa, numa clara conexão entre o rádio, a música e a informação como catalisadores desse pequeno microcosmo da comunidade. É interessante também que nessa narrativa mais macro é usual que os personagens falem sobre a destruição que as enchentes causaram sobre os animais, então ouvem-se relatos de resgates de animais domésticos, da morte de animais de grande porte, como cavalos e gado, bem como observamos atônitos as cenas de cachorrinhos vira-lata que tentam ocupar o espaço do telhado de casas que parecem boiar na imensidão da enchente.
Todas essas imagens que compõem “Rua do Pescador, n° 6” ajudam a criar um pequeno panorama da destruição e nos alertam para o fato de que a crise climática já nos atinge no agora e que é necessário que estejamos cada vez mais alertas perante isso. Atentos especialmente para que tudo isso não nos desumanize em meio a tanta dor e tragédia, para que a gente não deixe nenhum momento de conseguir enxergar a dor do outro.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.