“Ney Matogrosso representa quem enfrentou a opressão da masculinidade”, diz Esmir Filho

  Jesuíta Barbosa encarna um homem-bicho indomável em Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso dirigida por Esmir Filho, que estreia nos cinemas nesta semana. Cantos de pássaros, trovões, insetos, pés na grama. É assim, no meio da mata atlântica, que começa a jornada de Ney — ou melhor, de um menino que se tornaria Ney […] O post “Ney Matogrosso representa quem enfrentou a opressão da masculinidade”, diz Esmir Filho apareceu primeiro em Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site.

May 2, 2025 - 00:08
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“Ney Matogrosso representa quem enfrentou a opressão da masculinidade”, diz Esmir Filho

Foto: Sergio Santoian

 

Jesuíta Barbosa encarna um homem-bicho indomável em Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso dirigida por Esmir Filho, que estreia nos cinemas nesta semana. Cantos de pássaros, trovões, insetos, pés na grama. É assim, no meio da mata atlântica, que começa a jornada de Ney — ou melhor, de um menino que se tornaria Ney Matogrosso. Da natureza para o palco, surge a figura andrógina cantando Homem de Neanderthal em um cenário pré-histórico. Logo na primeira sequência, Esmir apresenta o tom sensorial que guia o longa, estrelado por Jesuíta Barbosa, e que mescla momentos viscerais a passagens mais tradicionais, como o embate entre Ney e seu pai militar.

Uma das maiores apostas do ano da Paris Filmes, Homem com H equilibra linguagem autoral e apelo pop. A narrativa resgata desde o sonho de ser ator até a vida amorosa do cantor, passando por sua entrada nos Secos & Molhados e relações com Cazuza (vivido por Jullio Reis) e o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone). Tudo isso ao som de clássicos como Bandido Corazon e Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, com direito à gravação da turnê Bloco na Rua no Allianz Parque, em 2024. A seguir, o diretor conta como articulou estética e narrativa, defendeu as cenas de sexo, definiu o elenco e pincelou referências — de Claire Denis a Alair Gomes.

Harper’s Bazaar – No longa, você conseguiu combinar dois aspectos da sua filmografia: o olhar mais autoral, com uma pegada mais pop. Como foi encontrar esse equilíbrio?

Esmir Filho – Esse convite da Paris Filmes foi um presente. A vida do Ney se conecta com questões que já explorei em outros trabalhos: pulsão, desejo, sexualidade, relações familiares. Se fosse para dirigir uma cinebiografia, teria que ser a dele. Sempre admirei sua obra, sua postura, a forma como ele se coloca no mundo. Conforme mergulhava na história, percebia como ela dialogava comigo. A linguagem surgiu naturalmente. Era sobre ele, mas também sobre mim. E sobre todos nós. Tem muita coisa ali que atravessa diferentes gerações, vivências, opressões. Um corpo que enfrentou figuras de autoridade até afirmar: “sou assim”. E o título Homem com H é irônico, porque o filme justamente desconstrói essa ideia. Por isso, é tão meu também.

HB – É interessante a forma como você abre o filme, com o Ney ainda garoto andando pela natureza. Depois, corta para ele já no palco, no show Homem de Neandertal. E tem a borboleta azul, que reaparece mais à frente. Como surgiu essa ideia?

EF – Fico feliz quando alguém repara na borboleta, porque ela não estava no roteiro. Desde o início, eu queria começar com o Ney criança no mato. A primeira coisa que fiz foi ouvir toda a obra dele em ordem cronológica. O Ney é um intérprete guiado pelo que sente no momento. A exceção foi Homem com H, que ele inicialmente nem queria gravar. Mas quando ouvi Homem de Neandertal, no disco Água do Céu – Pássaro, senti que ali havia algo essencial. É um disco todo entrecortado por sons da natureza, como o Araçá Azul do Caetano. A mata e o palco são florestas diferentes, mas com o mesmo impulso criativo. A floresta é um fio que costura o filme. E a borboleta azul apareceu numa das cenas do menino, que ligamos ao figurino do show final. Virou símbolo. O filme é grande, mas foi feito com cuidado artesanal nos detalhes.

Foto: Sergio Santoian

HB – E como foi a história da borboleta?

EF – Ela apareceu numa das cenas do menino, mas só vi depois, revendo. Sabia que no número final ele usava uma borboleta azul. A imagem atravessa o filme. Foi uma surpresa, mas também um sinal bonito. Tudo foi sendo descoberto aos poucos. Uma superprodução com alma artesanal.

HB – Além do seu encontro com o Ney, o filme também traz um belo encontro entre Jesuíta e o Ney. Como aconteceu esse encontro?

EF – Viramos um trio. O Ney colaborou desde o início, trazendo memórias e deixando espaço para minha ficção. Ele leu a primeira versão e disse: “tem coisas aí que talvez eu nem tenha dito, mas poderia ter dito”. Isso me deu liberdade para construir. Queria um ator que tivesse o Ney dentro de si, não alguém que imitasse. O Jesuíta tem isso: a maneira de usar o corpo, a franqueza, a intensidade em cena. Disse a ele: “o Ney já está aí, agora vamos trabalhar o exterior”. E aí vieram os ensaios, o canto, a dança, a prosódia, a perda de peso, os pelos, os dentes separados, o figurino. Foram meses moldando esse Ney até ele surgir em cena.

HB – Cinebiografias costumam ser grandes sucessos, e esse filme é uma superprodução. Você teve algum receio ao incluir cenas de sexo gay?

EF – Desde o começo, sabia que a linguagem do Ney precisava estar presente. E isso inclui o erotismo, a liberdade. O Ney fala de sexo com naturalidade, e eu também. A Paris entendeu isso desde o início. As cenas têm função narrativa: mostram momentos de entrega, de negação, de amor. Tem a primeira vez, o grande amor da vida — o Cazuza —, e o relacionamento com o Marco, que contraiu HIV. Nada é gratuito. Não é sobre chocar. Ney é sensual, não explícito. O sexo está ali como coreografia, como expressão do corpo.

HB – Como foi a escolha do Bruno Montaleone, que interpreta Marco, e do Jullio Reis, como Cazuza?

EF – O Cazuza foi o mais difícil. Tinha que estar, principalmente pela turnê O Tempo Não Pára, que o Ney dirigiu. Essa história nem é mencionada na biografia do Cazuza, então fiz questão de reparar isso. Mostrei o Cazuza mais delicado, carinhoso, como o Ney o conheceu. O Júlio tinha esse tom, fui com ele. Já o Bruno me emocionou com a self-tape. Era a cena em que o Marco descobre o HIV. Ele conseguiu equilibrar a técnica do médico e a dor do amante. Aquela angústia de quem quer proteger quem ama. Me comoveu.

Foto: Sergio Santoian

HB – Um dos elementos mais marcantes da cenografia é a pintura de Keith Haring na cabeceira da cama. Como ela entrou no filme?

EF – Vi um show do Ney em Montreux, 1983, no YouTube. Keith Haring estava ao lado do palco pintando um mural. Depois descobri que ele deixou a obra secando e ela foi roubada. Então, no filme, devolvi esse quadro ao Ney. Uma licença poética. Assim como nas cenas de praia com Cazuza, que são inspiradas nas fotos de Alair Gomes. Recriamos algumas imagens dele. Também há uma foto da Rita Lee no apê da Luli. Não coloco a Rita como personagem, mas ela está lá. Ela e o Ney se separaram de suas bandas na mesma época. Achei bonito mostrar isso de maneira sutil, através da arte e do cenário.

HB – Outra referência que percebi foi ao filme *Beau Travail*, da Claire Denis.

EF – Total. Queria fugir da estética tradicional da aeronáutica e mostrar como Ney sentia tudo no corpo. O desejo pulsava ali. É onde ele vive seu primeiro amor. Dois rapazes que partem do mesmo ponto e seguem caminhos diferentes. Beau Travail foi uma referência direta para retratar esse universo de tensão e repressão.

HB – Por que você acha que o Ney agrada públicos tão diversos?

EF – Porque ele inspira quem já passou por repressão, mesmo sem perceber. Ele representa a liberdade de um lugar verdadeiro. Uma senhora religiosa pode amar o Ney porque sente isso. Ele diz: “não se contentem com a minha liberdade, exercitem a de vocês”. Ele não confronta, ele convida. Não é agressivo, é exuberante. Não está contra, está junto.

HB – Parte do público jovem às vezes critica o Ney por não levantar bandeiras. Ele mesmo disse: “sou a bandeira”. Como você vê esses comentários?

EF – Ele veio antes de tudo isso. Quando surgiu, nem existia um vocabulário para discutir gênero. O Miele teve que procurar no dicionário o que era “andrógeno”. Ney era isso sem precisar nomear. Era bicho, era matéria viva. O filme quer mostrar esse corpo queer atravessando o tempo. A geração de hoje precisa entender que nada foi dado — foi conquistado. Quem critica talvez não saiba de onde viemos.

Foto: Sergio Santoian

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