Entrevista: Arto Lindsay fala sobre o projeto “Afonia e Afeto”, onde discute arte, tecnologia e o que surgir na conversa

Artista inventivo, Arto é também uma voz pulsante para pensar nosso tempo e nossa arte. Tire um tempo para mergulhar nesse fluxo de pensamentos, ideias e questionamentos propostos por ele

Mar 6, 2025 - 07:05
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Entrevista: Arto Lindsay fala sobre o projeto “Afonia e Afeto”, onde discute arte, tecnologia e o que surgir na conversa

entrevista de Renan Guerra

Arto Lindsay poderia ser apresentado como quem faz uma descrição de LinkedIn: “É músico, compositor, produtor, artista multimídia; traz em seu currículo colaborações com nomes como Caetano Veloso, Laurie Anderson e Ryuichi Sakamoto e projetos ao lado de artistas como Jean-Michel Basquiat, Matthew Barney e Brian Eno”. Seria uma bela introdução, ainda que formulaica, e que poderia seguir acrescentando nomes, parcerias e criações, tudo que qualquer pessoa encontra no Google com muita facilidade. Se você não conhece Arto, talvez valesse a pena começar ouvindo coisas diversas, como os discos “Greed” (1988) e “Lust” (1991), do Ambitious Lovers, ou a parceria com Caetano em “Circuladô” (1991). Tudo isso faria sentido, porém a entrevista que você lerá abaixo não necessita de todas essas credenciais, pois Arto se apresenta aos poucos em cada resposta, em cada digressão.

Em 2024, Arto começou o projeto “Afonia e Afeto”, uma série de conversas com sua curadoria e mediação, com figuras diversas, de áreas de pesquisa e pensamento amplas. As conversas são disponibilizadas no YouTube e se permitem ser longas, diversas e, por isso mesmo, muito interessantes. “Afonia e Afeto” é uma realização do espaço de arte Auroras e do Promac – Secretaria Municipal de Cultura, informação que parece um tanto burocrática, mas vocês verão que também se fala sobre possibilidades de produção e financiamento em nosso papo abaixo. Conversa que tem como ponto de partida o programa de YouTube e sua apresentação, prelúdio que Arto segue direitinho: ele apresenta o programa, explica sua logística e convida aos primeiros episódios, disponíveis até o momento desta entrevista – realizada no final de 2024. Depois disso, ele nos propõe um jogo muito parecido com o de seu programa, em que os temas vão surgindo e outras discussões se impõem, num cenário em que aquilo que seria considerado como uma digressão se torna uma parte essencial da narrativa.

Para muitos jornalistas, Arto é um sonho, o entrevistado ideal: ele segue os protocolos que nos levaram aquele papo, mas também permite que outros caminhos se imponham – e isso é ouro aqui para o Scream & Yell, somos fãs das entrevistas sem limite de caracteres. Nesse papo, Arto Lindsay fala sobre arte, produção de conteúdo, criação independente, tecnologia e o impacto da inteligência artificial, e, claro, sua experiência de norte-americano adotado pelo Brasil e pelos brasileiros. Trata-se de uma grande apresentação da mente de Arto, seu fluxo de pensamento, sua mente sempre ativa, seu olhar constantemente inquieto sobre o mundo e sua forma de nos questionar sobre diferentes temas.

Artista inventivo, Arto é também uma voz pulsante para pensar nosso tempo e nossa arte. Tire um tempo para mergulhar nesse fluxo de pensamentos, ideias e questionamentos propostos por ele, tanto aqui quanto em seu “Afonia e Afeto”. Aproveitem nosso papo na íntegra abaixo:

Para começar, queria falar um pouco sobre “Afonia e Afeto”. Entender um pouco como surgiu essa ideia de criar esse programa de diálogos e entender qual é a proposta? Como você construiu esse projeto?
Olha, estou envolvido com o Auroras desde o início. Sou amigo do Rica Kugelmas, que é o Auroras. E achei que seria legal interagir com pessoas de outras áreas, cientistas, escritores, e não só gente de artes plásticas. Então, foi uma vontade, uma ideia muito abrangente, muito geral. Não foi específico em nenhum sentido. E até agora tivemos duas conversas e eu tô aprendendo a liderar, moderar, não sei (direito) qual é a expressão, as conversas. Até agora, quando assisto, acho muitas falhas na minha parte, de como encaminhar a conversa, jogar um verde, sabe? Atrapalhar um pouco ou incentivar um pouco. Estou aprendendo. Mas pretendemos continuar no ano que vem (2025). Até agora foram dois.

Sim. Você falou um pouco dessa questão do aprendizado. Entendo que o diálogo é um processo muito importante no seu trabalho. E se colocar nesse lugar é também se colocar em um lugar novo, não? Nesse espaço de mediador desses diálogos.
Sim, com certeza. Eu funciono muito na base do diálogo. No meu próprio trabalho musical ou espacial, ou seja, visual. E você tem razão. É um pouco diferente essa relação, sendo o terceiro ponto do tripé, é diferente, sim.

Esse projeto do Auroras está sendo divulgado no YouTube, vocês têm um tempo maior, são episódios longos. É um caminho bastante interessante de ser assumido no momento em que a gente vê muitas pessoas acelerando os conteúdos ou diminuindo o tempo das coisas. Eu queria entender um pouco sobre essa perspectiva de abrir o tempo para o espaço de diálogo e para a conversa.
A gente assume um certo risco da conversa perder a graça, não é? Porque ela é direcionada de uma maneira bem geral. Primeiro, nós até consideramos fazer um podcast. Mas acho que os podcasts são um formato mais preso e mais formatado. E acho que as pessoas teriam mais paciência para deixar rolar um vídeo no YouTube e prestar atenção ou não prestar atenção, sabe? Ficam com aquilo ali. O podcast… Os que eu conheço são… Tem alguns que são bem direcionados, alguns que eu escuto de vez em quando, um amigo que é cientista do clima, tem uns de filosofia que de vez em quando eu escuto, mas, para falar a verdade, eu não tenho muita paciência para isso. Prefiro ler. Tenho um filho de 20 anos, e ele não gosta de absorver informação lendo. Ele é uma geração que cresceu olhando para o telefone. Então, ele prefere muito vídeo e assiste a muitos vídeos. E me pergunto se esses vídeos são confiáveis, se é mais um filtro. Se o escritor já é um filtro frente a história, ou alguma técnica, ou algum assunto que não seja completamente objetivo, ou seja considerado objetivo, como a matemática. Mas ele e a geração dele, é assim que eles aprendem. Interessante. Outra coisa que, no podcast, não que seja o caso desse “Afonia e Afeto”, mas no podcast você tem que, você tem que pedir autorização para tocar uma música e muitas vezes até pagar antes de divulgar. E isso é muito limitador. Também tenho um programa de rádio com um amigo meu, Ben Radcliffe, que é DJ, professor, crítico de música nos Estados Unidos, escritor, e a gente também continuou a fazer um podcast, mas aí quando a gente viu, a gente foi escutar alguns, e a gente não pode tocar música, e não sei se você faz podcast ou escuta muito podcast, mas sempre vem com aquela trilhazinha anódina, sabe? Uma música que não é música, parece que é música de supermercado.

É isso mesmo, porque você realmente não pode usar as músicas. Se você está falando de música, é muito difícil você utilizar a música, porque senão eles retiram das plataformas de áudio. Isso é um caminho complicado.
Mas muita gente se dá bem com isso.

Você falou um pouco dessa questão do formato de vídeo. Você sempre experimentou com diferentes formatos e diferentes possibilidades. Entendo que estar nesse formato de vídeo no YouTube também é um tipo de experimentação para você dentro dessa caminhada, não?
É, com certeza. Não estou acostumado a esse tipo de vídeo e também não estou acostumado a esse tipo de exposição de uma ideia. Meus diálogos, geralmente, de trabalho ou com os amigos, com as pessoas com quem eu converso, são mais especulativos. São mais no sentido de, e se tal coisa acontecesse, daria qual resultado? Se a gente fizesse assim, o que é que ia ocorrer? É mais nesse sentido, geralmente, que a gente conversa. Sim. Claro que a gente também é bastante crítico e adora falar mal dos outros, mas acho que isso é humano.

Você falou dessa diversidade de pessoas que tem dentro do Afonia e Afeto. Você reúne outras figuras de outros universos e traz para discutir também a partir dessa perspectiva da arte. Como que foi essa formatação de trazer esses nomes? Como você chegou nesses nomes que participam do projeto?
O primeiro foi com a Renata Lucas, que é uma artista que admiro muito, e com o Pedro Meira Monteiro, professor de literatura de língua portuguesa na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Eu quis trazer uma perspectiva literária para o trabalho dela, entendeu? E eles tinham alguns pontos em comum, o interesse no imaginário indígena, na urbanística também brasileira. E começamos por aí. Eu apresentei uma ideia, a ideia da escala. Pequeno, médio, grande, distâncias grandes, intimidade, microssistemas, pouco no microscópico, etc. Mas foi a primeira e eu não consegui andar muito longe com a minha ideia, e a conversa foi por outros lados. O que também é bom, né? Aliás, é sempre bom. Mas o segundo, eu convidei o Marcelo Knobel, professor de física da Unicamp, e um amigo meu, músico, o Lourenço Rebetez, para discutir o tempo dentro da música. Você deve saber que na física, os físicos dizem que o tempo não é necessário para descrever o universo. As equações que descrevem o mundo, tanto o mundo quântico, que é das partículas, e o mundo cosmológico, os inversos, as constelações, etc., buracos negros e tal, para descrever tanto de um como do outro, não é necessário incluir o tempo. O tempo, nessas equações, ele pode ir e vir. Essas equações são iguais de um lado e do outro. Isso é uma grande questão na física, a existencia ou não do tempo. Se o tempo é uma consequência, se a nossa experiência do tempo é simplesmente uma consequência dos limites dos nossos sentidos, ou não. Então, foi uma conversa nesse sentido. E o Lourenço está fazendo uma pesquisa, tem um disco que estou ajudando, que é um disco muito focado sobre microrritmos e pequenas mudanças rítmicas. E você pode interpretar de uma maneira ou de outra, sabe? Então, essa conversa é mais técnica, porque eu acho que essas conversas mais técnicas fazem bem às artes visuais. Não que sirvam simplesmente como metáforas para você utilizar para colocar o título de uma pintura, mas os métodos das disciplinas diferentes e as relações entre os elementos com que eles mexem, eu acho que isso é muito interessante para a arte.

Sim. Você falou desse processo de relação entre artes visuais e esse processo que você está tendo com o Lourenço de música. Eu acho que a música é um ponto muito importante na sua carreira. Uma parte do público conhece muito o seu trabalho a partir do seu lado musical. Como você tem dividido todos esses processos atualmente? Esse caminho de estar nas artes visuais, esse processo de estar pensando outros formatos e de continuar experimentando com a música.
Quando comecei a fazer música, eu me inspirei muito nas artes visuais e nos procedimentos. E eu percebi desde o início que o som poderia ser um material escultural e que aquilo que a gente fazia musicalmente poderia ser entendido como uma escultura, enquanto não deixasse de ser inteligível como música, ou que não tivesse um impacto como música. E sempre me relacionei com artistas visuais e acho que eles também sentiam essa simpatia estrutural no meu trabalho. Fiz muitas colaborações com artistas nesses anos todos. Chegou uma hora que comecei a esboçar algumas instalações sonoras aqui e ali, mas fiz um desfile no Carnaval de Salvador com um artista chamado Matthew Barney, dentro do carnaval, com a colaboração do Grupo Cortejo Afro. E isso foi um desfile em que a gente desfilou no circuito Barra-Ondina, no meio dos outros grupos. E, por ser tão poroso e criativo, e sempre inovador, isso não causou espanto nenhum nos baianos e nos turistas. Era mais um desfile maluco. Depois disso, começaram a me chamar para fazer esses desfiles. Então, tenho feito esses desfiles como uma performance. Porque tem o lado escultural, tem o lado musical, é claro, tem o lado narrativo, e pode pensar que tem o lado cinemático. Então, o desfile, para mim, é uma forma parecida com a forma da ópera, que pode incluir muitas artes dentro de uma arte só. Aprendi muito nesses anos, porque colaborei com muita gente bacana, que me desafiou de várias formas.

Você falou um pouco dessa perspectiva de união de várias artes dentro desses desfiles, e eu entendo que, além disso, você também continua com projetos experimentais de música. Você continua se apresentando. Recentemente, você se apresentou aqui em São Paulo no Matiz, ao lado de outros artistas, e eu queria entender um pouco como têm funcionado essas trocas mais recentes na sua carreira.
É porque faço uma música denominada de mais experimental, mas também faço a música mais… eu me interesso pela forma da canção, sabe? E como sou um músico que decidiu não aprender várias técnicas convencionais lá atrás, quando comecei, para me diferenciar e também com aquela bela arrogância de um jovem de 20 e poucos anos, tentei fazer uma coisa possível, uma coisa absoluta, tocar música sem entender a música, saber tocar a música. Aí, para mim, construir uma canção é um desafio grande. Chegou uma hora que eu escolhi tentar fazer canções. Não deixar de lado a prática mais experimental, mas também tentar construir canções. E aí várias medidas, canções mais ou menos experimentais, mais ou menos tradicionais, cantar sambas, cantar músicas do solo americano, aprender a cantar melhor. Tudo isso é um projeto de educação ao ar livre, digamos assim. Estou me educando em cima do palco, estou me educando junto com as pessoas, estou apresentando um processo de me educar ali. Então, continua esse… Eu tenho um disco pronto, que estou agora procurando uma gravadora, um disco de canções, eu tenho feito uma série de discos de canções nesses anos. Uma carreira, de alguma forma, meio paradoxal, porque durante uma época, por exemplo, nos anos 1970, na Europa, e na Alemanha em particular, existia muita grana para a música experimental e para uma arte mais séria. Então, eu trabalhava lá e usava esse dinheiro para financiar minhas experiências com uma música mais convencional, que geralmente é o oposto. Geralmente, a pessoa que tem uma carreira convencional e depois, com o que sobra, vai para o experimental. Mas são esses elementos que a gente fica reutilizando em proporções, em relações diferentes o tempo inteiro. O fato de eu ser americano, mas também de alguma forma brasileiro, de ser bilíngue, de… É mais uma dualidade que a gente vai mexendo, entendeu? É um dado, sabe? A gente joga com o time que tem, né?

Sim. Você falou que tem um disco pronto e está procurando esse meio de lançar. Como tem sido essa sua produção, que eu imagino que caminhe por um caminho mais independente. Como funciona. Se tem uma temporalidade, se você vai trabalhando, de repente tem um projeto pronto, e aí você vai em busca de como lançar, como que funciona essa ordem?
De várias maneiras, sabe. Não tem uma maneira. Teve uma época que uma banda minha chamada Ambitious Lovers, que eu tinha com um colega, o Peter Scherer, trabalhou com gravadoras grandes, multinacionais. E como produtor também sempre trabalhei com, ou nem sempre, mas trabalhei bastante também com gravadoras multinacionais, etc. Mas, recentemente, eu tenho uma maneira de conseguir gravar esses discos. Eu faço um pré-licenciamento para várias gravadoras independentes. Uma no Japão, uma na Itália, uma nos Estados Unidos. Cada uma dessas gravadoras me dá um pouco, portanto, junto esse tanto e é o meu orçamento para fazer o disco, certo? Mas os direitos do disco continuam comigo, o fonograma, o direito da gravação, não só da composição, mas o direito da gravação em si retorna para mim, eventualmente, entendeu? E hoje em dia isso é cada vez mais comum. Você vê, por exemplo, Tyler, The Creator, que eu sou muito fã, ele é um rapper e um produtor muito interessante, eu adoro esse cara. Eu não sei se ele tem um contrato diretamente com uma multinacional, como os artistas tinham antigamente. Acho que ele deve ter uma gravadora dele, ele tem um contrato, pessoa física com essa empresa, e essa empresa faz um licenciamento com a Universal, Warner, BMG, Sony, uma dessas grandes (para distribuir o disco). Mas a verdade é que o mercado musical muda bastante. É quase impossível hoje em dia uma pessoa que não seja uma estrela viver de venda de discos, porque já foi possível. Você tinha aquele seu público restrito, você vendia um certo número de discos, pagava os impostos, o aluguel, a conta de luz, tudo certo. Mas hoje em dia, você deve saber disso, YouTube e streaming não pagam nada. Pagam uma mixaria. os músicos basicamente vivem de shows, né?

Sim. No caso do Tyler, The Creator, ele tem uma espécie de label dele, que é a Odd Future, que fica abaixo da Sony Music. E aí a Sony ajuda ele a fazer esses caminhos, esses trânsitos maiores, mas ele trabalha de uma forma mais independente dentro disso.
Isso, com o Odd Future ele mantém a posse do fonograma, faz esse contrato com a Sony e a Sony provavelmente entra com distribuição de produto físico e também com divulgação. Essa é a chave de tudo. Sim. É a divulgação, que é a parte mais difícil hoje em dia. Se você não acertar no TikTok, ferrou. Isso está mudando. Dois anos atrás, as gravadoras grandes só chamavam artistas que tinham números bons no TikTok. E aí é uma roleta russa. Se sua música aparecer num vídeo que viralizar, não sei o que. Ou se você já é famoso, é outra coisa, mas se você está começando, é difícil. Mas isso também está arrefecendo, está diminuindo para as pessoas se apoiarem tanto nos números do TikTok. Você é músico?

Não, sou jornalista só de música.
Deve saber mais dessas coisas.

Um pouco. Eu queria entender se para você, como artista independente que faz uma música que muitas vezes foi lida por essa indústria como uma margem, se essas coisas impactam no seu trabalho, como impactam para você lançar, distribuir as coisas?
Não impactam completamente. O meu trabalho é nicho de nicho de nicho. É difícil. Mas é engraçado porque… Eu tenho um público ao redor do mundo, não é um público grande, mas ele cobre a Terra. Na Ásia, nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, um pouco no resto da América Latina. Eu gostaria muito de poder viajar na África, mas é um continente que não conheço ainda. Na Islândia, sabe? Tem gente que gosta de música, que procura música. Para gostar ou para se interessar. Ainda existem essas pessoas espalhadas pelo mundo. Agora, ao mesmo tempo, eu não sou contra a situação musical contemporânea. Estou muito interessado nesse momento da chegada da inteligência artificial no cinema e na música. Acho que é possível que, daqui a pouco, a inteligência artificial pode ser vista como mais um instrumento. Quando chegou o sintetizador, meu Deus do céu! Quando chegou o toca-disco, meu Deus do céu! Quando chegou a própria gravação, meu Deus do céu! Para inventar alguma coisa nova, uma música que ninguém nunca ouviu. E a gente também está aprendendo… Acho que as pessoas têm demasiado medo. Acho que a inteligência artificial vai ter um impacto grande na economia, mas na criatividade ela. Acho que ela não vai fazer tantos danos, essa é a minha opinião,.

Isso já é uma discussão que tem aparecido, surgiram esse ano alguns filmes (no Oscar, inclusive) que já utilizaram inteligência artificial e alguns músicos também começaram a experimentar com isso, se não me engano, tem um artista que fez um disco que brincava um pouco com isso. E tem alguns artistas já experimentando, mas existe essa discussão, acho, muito em torno dos limites do uso e até onde isso fica claro para o público. Como que isso foi utilizado, porque acho que, às vezes, as pessoas têm um medo, porque a gente sabe que, de algum modo, isso, em determinadas mãos, é usado mais como uma forma de tirar certos trabalhadores desse meio de campo. Então, acho que é uma discussão complexa.
É uma discussão complexa, e meu amigo Ben, de quem eu falei antes, ele falou que, para ele, ele acha que os músicos vão se adaptar, vão achar maneiras de usar, mas ele tem medo da relação do músico com o público, porque o público não vai saber se tem uma pessoa atrás daquilo. Mas já passei por alguma coisa parecida e eu acho que… eu me lembro de… você conhece música eletrônica, né? Dos anos 70? Então, eu conhecia a música eletrônica que veio da música clássica contemporânea com os osciladores, blá, blá, blá, mas também com fita, cortando fita, esses métodos da música eletroacústica dos anos 1940, 1950 e 1960. Mas por trabalharem com materiais abstratos, a gente não sentia muito a mão do músico, o gosto, o corpo, as coxas do autor, do compositor. Depois veio a música eletrônica, o que chamam no Brasil de música eletrônica, que é música para dançar, música repetitiva, à base de loops… Isso tudo. Mas aí eu ouvi um disco do Brian Eno chamado “Another Green World” (1975), e foi a primeira vez que eu senti que o cara tava mexendo ali no dispositivo eletrônico, seja qual for, de qual faixa, eu senti uma pessoa humana atrás daquelas decisões. Porque a música dançante era tipo quatro compassos, aí entra um outro som, aí vai, aí depois de oito compassos entra um outro som, aí tira alguma coisa. Era muito linear. E o prazer daquilo não era o prazer do inesperado e também não era o prazer da antecipação ou o prazer da melodia. Uma coisa que a gente acha que vai pra cá, mas não vai, ou vai, sabe? Qual será a próxima nota? Ela vai ser o que a gente espera ou a outra? São dois prazeres diferentes. Na música eletrônica para dançar, o prazer dele é outro. É o prazer da… força da música, da compressão. Sonhos que realmente uma pessoa não pode fazer, uma pessoa pode iniciar, pode ligar uma máquina, mas uma pessoa não consegue fazer o que a máquina consegue fazer. Então é toda uma outra discussão aí.

Sim. Conferi aqui, e o artista que citei antes se chama Caribou. Ele lançou um disco chamado “Honey”, que utiliza na música uma inteligência artificial para ajuda-lo na composição. E aí tem essa outra artista, da Holly Herndon, que ela tinha criado uma inteligência artificial que respondia a voz dela e criava um diálogo entre ela e essa voz. Então, acho que a gente tem possibilidades de artistas experimentando…
Isso. Agora, vou te falar aqui, já que é muito improvável que o rapaz do Caribou ou a Holly Herndon escutem esse programa, mas as músicas dos dois, em geral, são muito chatas. Especialmente da Holly Herndon, o Caribou é profissional, são aquelas batidas… Então, isso também é uma coisa que acontece com a chegada de tecnologia nova, as pessoas usam a tecnologia pela novidade e não têm exatamente uma ideia. E essa ideia da Holly Herndon, por exemplo, isso existe há muito tempo, programas de computador que respondem aos músicos dentro do âmbito da música clássica contemporânea. Já ouviu falar dos projetos de George Lewis? Um colega meu, que hoje em dia é professor laureado lá nos Estados Unidos, mas é um trombonista de jazz, que também trabalhou muito com improvisação livre, George Lewis, ele criou um programa que respondia a gente. A gente tocava uma frase, esperava, e o programa respondia, entende? É muito primitivo. Mas toda essa questão da interação da tecnologia e de uma pessoa é super interessante, porque muito rapidamente a gente perde a referência e vira uma espécie de efeito corriqueiro. Então o músico pode achar e pode até te explicar que ele construiu o sistema intricado, etc., não sei o que, mas quando a gente ouve, parece, sei lá, Jimi Hendrix. Fazendo os pães com a guitarra e com um pouco de microfonia, sabe? A interação disso tudo com o nosso corpo, com os nossos ouvidos, com a nossa resposta, é uma coisa que muitas vezes as pessoas se esquecem. Mesma coisa com a espacialização, também mexo com essa coisa de multidimensionalidade no sentido de muitas fontes de som. Eu acho superinteressante e mexo bastante com isso. Mas isso também é a gente chegar num ponto de, digamos, ficcionalizar a experiência, não tentar reproduzir muitas vezes essas tecnologias tentando reproduzir nossa experiência normal. Você vai ao cinema, aquele surround é para você se sentir naquele lugar. E eles também têm muito medo da espacialização nos filmes, porque eles querem que a gente siga aquele ponto, aquela linha vermelha, como dizem no alemão, a história, a emoção, eles querem que a gente siga aquilo. E, durante anos, existia uma tecnologia muito bacana, mas só se usava para foguetes e balas. E carros passando. Agora que eles estão começando a investigar mais a atmosfera, o som de um lugar, etc.

Você entende que essas perspectivas, por exemplo, de pensar na inteligência artificial, nessa outra relação que as pessoas têm com as telas, de algum modo ela vai ser muito modificadora, por exemplo, para a música que a gente conhece hoje em dia?
Olha, eu acho que enquanto a gente tiver o mesmo corpo, a música tem que chegar de alguma maneira na gente e tem que satisfazer a gente, tem que instigar a gente. Acho que são outros meios… enquanto o Zuckerberg imagina um mundo que a gente queira passar não sei quantas horas por dia dentro de um capacete, não sei se aquilo vai ser mais interessante do que a vida em si, sabe? E falta muito ainda. E eu também tenho um movimento contrário, que eu acho que, e isso é muito comentado, as pessoas têm fome de uma experiência ao vivo, as pessoas querem ficar juntas, etc. E isso é uma coisa que… É impossível, você pode estar ali dentro daquele mundo, os avatares dos seus amigos estão ali, mas ali é um videogame,! Não é uma… Digamos, você não vai beijar ninguém ali dentro. Eu não tenho tanto medo disso, eu acho que talvez, em vez desse mundo totalizante, a gente desenvolva mais práticas que misturam um com o outro. Por exemplo, como é que chama? A realidade aumentada. Que você olha no telefone e você vê o que está na sua frente, mas tem alguma coisa aparecendo ali, só na tela do telefone. Não sei se isso é… Mas esses híbridos, eu acho que talvez sejam mais interessantes. Essa é a minha opinião. Mas… acho que a reação das pessoas que escutam, por exemplo, uma música feita ali na hora é bem diferente da reação das pessoas que ficam vendo, por exemplo, um DJ tocar, sabe? Não que não exista também ali um fator muito estético, sei lá, muitas escolhas sendo feitas ali. Mas eu acho que… Não sei, talvez eu fui longe demais, talvez não devia falar assim dos DJs, porque eu já tive experiências com DJs incríveis, sabe? Incríveis. Faz bastante tempo, mas teve uma época que eu saía todo dia para dançar. Todo dia. Muitas vezes sozinho. Encontrava os amigos, as amigas. Mas eu saía pra dançar, ia nos lugares, dançava sozinho. Dançava com não sei quem. Era um grupo, era uma pessoa. Rolava ou não rolava, mas eu saía todo dia. E nessa época, cara, tinha uns DJs que parecia que explodia a cabeça das pessoas, sabe? Porque começava, aumentava, aumentava, aí voltava um pouco. Aí começava de novo, começava, aí vai um pouquinho mais, aí tem uma pausa, aí para aí, não para não, para não, aí vai, de repente, muito mais intenso, sabe? E o público era uma loucura.

Eu acho que tem a ver com essa perspectiva de experiência coletiva que você falou. É, e é super importante. Eu acho que a gente também modificou o nosso olhar para essas experiências coletivas após a pandemia de Covid-19. Acho que isso também fez a gente repensar um pouco como a gente quer lidar com essas experiências coletivas.
É, mas ao mesmo tempo tem essa vontade maluca de experiências coletivas. Você vê esse surto de festivais aqui no Brasil, que é hilário, porque são todos caríssimos, Para mim, não tinha tanto playboy no Brasil para pagar esses custos, sabe? Mas o público é muito homogêneo. Independente do que aparecer no palco. E agora estão começando a aparecer as estrelas nacionais nesses festivais, que antes não era assim, né? Eram getaways. Só apareciam em grupos temáticos. Eu não podia botar uma estrela brasileira, tinha que ser duas ou três e tinha que ter uma razão ali. Mas então, isso está mudando, e isso é bom. Mas eu ainda acho que são muito caros. E as manifestações como o Carnaval, que é uma coisa brasileira que tem uma força incrível, que é um dos dons do público brasileiro. Quando você bota mil brasileiros juntos, eles já estão… eles já lembram de como é o carnaval, da possibilidade orgiástica daquilo ali, sabe? Isso é uma coisa bem nossa, isso não tem nos outros lugares, entendeu? O movimento dos blocos afros nos anos 90 foi uma coisa incrível. Os bailes funks! Que não tem segurança! Que são experiências comunitárias, por excelência, sabe? Toda aquela energia adolescente. E aquela loucura. Não tem segurança nenhuma! Você vê que os governos não ligam para aquilo, acham aquilo errado. É difícil. Mas a gente se reúne, né?

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. A foto que abre o texto é de Anitta Boa Vida / Divulgação