Sonhos, auras e o paranormal. A arte do transcendente de Susan Hiller chegou à Culturgest

Depois de Espanha, a exposição retrospectiva da artista norte-americana – a primeira depois da sua morte – ocupa oito salas da Culturgest. "Dedicado ao Desconhecido" inaugura esta sexta-feira.

Mar 14, 2025 - 20:09
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Sonhos, auras e o paranormal. A arte do transcendente de Susan Hiller chegou à Culturgest
Sonhos, auras e o paranormal. A arte do transcendente de Susan Hiller chegou à Culturgest

O título – "Dedicado ao Desconhecido" – sintetiza o corpo de trabalho de Susan Hiller, que ao longo de mais de 50 anos se debruçou sobre as dimensões do subconsciente e do paranormal. A sua obra, que contempla pintura, fotografia, escultura, caligrafia, colagem e vídeo, chega agora à Culturgest através de uma exposição retrospectiva originalmente concebida para o Museu Helga de Alvear, em Cáceres, Espanha – é a primeira depois da morte da artista, em 2019, mas também a primeira a ter lugar em Lisboa.

"Esta não é uma retrospectiva abrangente de toda a sua carreira, mas foca apenas um conjunto de interesses que a Susan seguiu desde o início até ao fim da carreira. No seu trabalho, que se estende por cinco décadas e diferentes expressões artísticas, ela tocou em áreas do conhecimento e da experiência que muitas pessoas consideram estranhas ou misteriosas ou irracionais. Muitas obras são sobre sonhos, auras, sobre automatismo, alucinações, este tipo de coisas. Mas é importante notar que as crenças da Susan não tinham grande interferência no seu trabalho. Ela não tenta provar ou negar a existência destas coisas, ela espera que elas nos mostrem coisas sobre nós mesmos, sobre como percepcionamos o mundo, como pensamos sobre a nossa identidade e qual o nosso entendimento dos vários estados de consciência", começa por apresentar o britânico Andrew Prive, curador da exposição.

"Dedicado ao Desconhecido", de Susan Hiller, na Culturgest
Raquel MontezExposição "Dedicado ao Desconhecido", de Susan Hiller, na Culturgest

Ao longo de oito salas, a exposição destaca núcleos relevantes da obra de Hiller, que tendo nascido na Florida – onde começou por estudar linguística, arqueologia e antropologia – fixou-se em Londres ainda nos anos 70, momento em que dá início à produção artística. Na primeira sala, encontramos Dedicated to the Unknown Artists, uma sucessão de painéis com os mais de 400 postais coleccionados por Susan, recém-chegada ao Reino Unido. "Quando tinha 29 anos, visitou a costa do Reino Unido e encontrou estes postais numa pequena loja. Todos eles representavam ondas a rebentar na margem, mas o que a fascinou mais foi o facto de todos terem a descrição: mar revolto. Ela ficou interessa na forma como a descrição verbal condiciona a nossa experiência visual, por isso começou a coleccionar centenas destes postais", detalha Price.

São fotografias, pinturas e, em alguns casos, ambas as técnicas na mesma imagem, cujas diferenças e semelhanças Susan Hiller registou em extensas tabelas, um claro reflexo da sua formação científica. "O que ela revela é algo mais profundo – o nosso fascínio e o nosso medo das forças da natureza. Acredito que seja algo especialmente pertinente nos dias de hoje, num período em que nos deparamos com uma crise climática", remata. A partir da década de 80, Hiller viria a produzir trabalhos de grande escala a partir destas imagens – ondas e tempestades, com manipulações de cor que, no caso das mais tardias, chegam a ser digitais.

"Dedicado ao Desconhecido", Susan Hiller, Culturgest
Raquel Montez"Dedicado ao Desconhecido", Susan Hiller, Culturgest

Nas sala seguintes, a exposição mostra pela primeira vez materiais originais do projecto "Dream Mapping", um conjunto de desenhos que oscilam entre o traço infantil e a fórmula matemática onde várias pessoas foram desafiadas a representar os próprios sonhos no papel. "Foram sete participantes, durante três noites. Ela, basicamente, tentou encorajar estas pessoa a mapear os seus sonhos. O sítio onde os sonhos são experienciados é de certa forma desconhecido para nós e muitas vezes eles escapam-nos assim que acordados na manhã seguinte. Mas este trabalho parece ter desafiado as pessoas a regressarem a esse sítio. Então todas as manhãs, reuniam-se para mapear os próprios sonhos. A Susan supervisionou-os e criou um mapa composto, onde tentou identificou certos elementos comuns", explica o curador.

Ao longo da sua carreira, Hiller trouxe várias outras matérias do domínio do transcendente para o campo da arte conceptual. A telepatia foi uma delas – um trabalho que acabou por levá-la a explorar uma outra via para a expressão artística, a escrita automática. "Ela percebeu que a mão se movia pela página de forma totalmente dissociada. Ela fez estes rabiscos estranhos, algures entre o texto e os hieróglifos, o que acabou por mexer com ela e levá-la a outras experiências com escrita automática", clarifica Price. A exposição contém três destes trabalhos, mas também tentativas posteriores de transcrever esses mesmos textos.

A escrita automática viria a estar presente no trabalho de Susan Hiller durante as duas décadas seguintes. Nos anos 80, por exemplo, produziu uma série de trabalhos a partir de papéis de parede de quartos de criança, fazendo destes pano de fundo para os textos indecifráveis. Com o mesmo objectivo de "projectar uma interioridade num espaço que é doméstico", Hiller viria a projectar os mesmos exercícios de caligrafia no interior de uma casa na Califórnia. A experiência resultaria numa série fotográfica chamada The Secrets of Sunset Beach.

"Dedicado ao Desconhecido", Susan Hiller, Culturgest
Raquel Montez"Dedicado ao Desconhecido", Susan Hiller, Culturgest

A artista, que realizou a primeira exposição em Portugal – a única até agora – em 2005, em Serralves, viria também a explorar o retrato. Para a Culturgest, veio uma série de auto-retratos parciais e fragmentados, feitos em cabines de fotografia automática, nos quais nunca a vemos por inteiro. "Mais uma vez, isto reflecte a ideia de que a identidade não é algo que se possa capturar na essência", denota o curador.

Das cinzas à explosão de cor, a veia experimental de Susan leva-nos até à recta final da exposição. Sim, a artista queimou algumas das suas obras e colocou as cinzas em frascos de vidro, também eles exibidos na Culturgest. Mas no último núcleo a imagem não podia ser mais vivaz. Na fase final da vida, já na segunda década do século XXI, inspirada pelo Retrato do Dr. R. Dumouchel, quadro que Marcel Duchamp pinta em 1910, Hiller produz uma série de retratos. Chamou-lhe Auras. Pessoas anónimas envoltas numa neblina multicolor que a artista manipulou, tal como já havia feito com os postais nos anos 70.

"Ela ficou conhecida pelas instalações audiovisuais, mas ela sempre foi muito experimental dentro do que são os média tradicionais. Outro objectivo desta exposição é dar destaque a aspectos mais desconhecidos da sua carreira", remata Andrew Price. Com a inauguração marcada para esta sexta-feira, às 22.00, "Dedicado ao Desconhecido" terá uma visita guiada pelo próprio curador no sábado, 15 de Março, às 16.00. Já sem a orientação do especialista britânico, as visitas repetem-se nos dias 29 de Março, 3 de Maio e 21 de Junho, às mesma hora.

"Fac Simile" e o amor a Marcel Broodthaers

Às portas da grande exposição, a Culturgest mantém um espaço reservado a pequenas mostras, sempre desenhadas em torno de um objecto central – o livro. Até 22 de Junho, o artista norte-americano Joe Scanlan parte de La Conquête de l'espace, Atlas à l'usage des artistes et des militaires, obra do belga Marcel Broodthaers, para apresentar Expanded Atlas. Original e "réplica" divergem essencialmente na dimensão. O livro de 1975 mede cerca de 4x2 centímetros e representa, em cada página, vários países do globo – todos com o mesmo tamanho.

"Fac Simile", Joe Scanlan, Culturgest
Raquel Montez"Fac Simile", Joe Scanlan, Culturgest

A dimensão política, mas também a escala inusitada do objecto, inspiraram Scanlan, seguidor confesso da obra de Broodthaers que em 2015 fundou a Broodthaers Society of America, uma "organização dedicada a analisar as ressonâncias e a influência do trabalho do belga no contexto político e cultural dos Estados Unidos". O novo livro, a versão de Scanlan, é uma versão ampliada, com páginas de feltro e com a inclusão de novos países, já que o hemisfério sul estava subrepresentado na obra de 1975. A peça poderá ser manipulada pelo público e estará acompanhada por mais de 20 fac-símiles que outros artistas, galerias e museus produziram a partir de originais de Marcel Broodthaers, mas também que o próprio fez da sua obra e da obra de artistas como Mallarmé ou Baudelaire. A entrada é gratuita.

Rua do Arco do Cego, 50 (Campo Pequeno). Ter-Dom 11.00-18.00. Até 22 Jun. 4€