Emilia Pérez: o filme que não precisávamos
Um filme com crise de identidade: é francês, mas jura que é mexicano. Alega ser baseado em fatos reais mas é ficção. Fala do México mas foi filmado na Europa, além de só ter uma atriz mexicana, sendo o restante elenco todo “gringo”. Esse é “Emília Peréz”: um monstro de Frankenstein cinematográfico que desperdiçou oportunidades […]


Um filme com crise de identidade: é francês, mas jura que é mexicano. Alega ser baseado em fatos reais mas é ficção. Fala do México mas foi filmado na Europa, além de só ter uma atriz mexicana, sendo o restante elenco todo “gringo”. Esse é “Emília Peréz”: um monstro de Frankenstein cinematográfico que desperdiçou oportunidades e tratou temas como diversidade, violência, narcotráfico e “estereotipização” da cultura latina com a mesma sensibilidade e profundidade emocional que um elefante teria ao desfilar na passarela da Paris Fashion Week.
Muito antes de ser indicado a 13 categorias no Oscar 2025 e de causar algum frisson na mídia, eu tive a oportunidade de assistir Emília Peréz no Festival de Cannes, em maio de 2024, em uma première com a presença do elenco. De lá para cá, muita coisa aconteceu e acho que, agora que já é conhecida a recepção do público e da crítica e depois de eu ter reassistido ao filme mais 3 vezes (só para ter certeza e não ser injusto no que vou dizer), tenho argumentos suficientes para fazer uma análise fria e sem proselitismos sobre o filme. Vamos lá:
Chances não aproveitadas
Em uma época em que a premiação máxima do cinema se torna palco para celebrar obras de enfrentamento ao status quo, ao mainstream e trazer à discussão pautas mais progressistas, Emília Pérez se apresenta como uma tentativa fracassada de transpor para as telas os horrores do narcotráfico e a complexidade da transformação pessoal – mas, ao fazê-lo, acaba se tornando, infelizmente, um espetáculo de exageros e contradições, desperdiçando uma oportunidade de ouro de falar sobre temas importantíssimos e atuais.
Apesar de sua alegada “base” em fatos reais, sendo a própria personagem princial e todo o enredo ficcional, o filme se perde em uma dramatização grotesca de eventos que poderiam ser verídicos. Emília Pérez narra a jornada de uma figura controversa: um temido chefe do narcotráfico mexicano que, em uma reviravolta sem precedentes, decide se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual para viver como a mulher que sempre sonhou ser. Essa proposta, que deveria debater os horrores da realidade, falar sobre combate ao preconceito com pessoas LGBT+, abordar o assunto do tráfico de drogas e a violência, acaba na verdade se transformando num amontoado de clichês e artifícios estéticos, muito fora da realidade. E a culpa disso recai muito sobre o renomado diretor Jacques Audiard.
O longa competiu em nada menos que 13 categorias no Oscar 2025 – entre elas, Melhor Filme, Melhor Direção para Audiard, Melhor Atriz para Karla Sofía Gascón (a primeira mulher trans a ser indicada na história do prêmio), Melhor Atriz Coadjuvante para Zoe Saldaña e, absurdamente, Melhor Canção Original com “El Mal” (além de “Mi Camino”). Levou só duas estatuetas para casa, o que mostra que algum bom senso ainda se pode esperar da Academia. Algum, porque o Oscar de “Melhor Canção Original” não fez o menor sentido, para ninguém.

Canção Original
Em uma competição de “Melhor Música Original” onde você tem Wicked (um dos melhores musicais de todos os tempos da Broadway), “Never Too Late”, composta e performada por Elton John (que dispensa apresentações), “El Mal” soa de mau gosto e artisticamente desajeitada.
A escolha – ou melhor, a imposição – de “El Mal” como candidata a Melhor Canção Original é para se lamentar. O que se pretendia ser uma trilha sonora que refletisse a dor e o conflito interno do protagonista se revela uma sequência musical desprovida de profundidade. A letra banal e os arranjos, assim como a coreografia, são exagerados e parecem ter sido concebidos somente para agradar aos votantes do Oscar, mas deixam o espectador com a sensação de que a música foi encaixada às pressas em uma obra já marcada por uma narrativa rala e artificial.
Mas isso não acontece apenas com a canção… o filme, de modo geral, em vez de celebrar uma narrativa que deveria servir de testemunho da brutalidade dos fatos, a produção acaba se afundando em excessos estilísticos que traem a veracidade dos acontecimentos.
Representatividade Fake
A tentativa de representar, de forma “real”, a cultura mexicana é igualmente falha. Embora o filme se passe no México e trate de temas dolorosos, como o desaparecimento de milhares de pessoas e a violência dos cartéis, a produção optou por gravar em estúdios europeus e contar com um elenco majoritariamente estrangeiro. A única presença genuinamente mexicana – a atriz Adriana Paz, em um papel secundário – é insuficiente para resgatar a autenticidade do cenário e das nuances culturais que o tema exige
Essa escolha não só evidencia um descompasso entre a intenção de retratar fatos reais e sua execução, como reforça um sentimento de eurocentrismo que subverte a credibilidade da obra.
Rivalidade com “Ainda Estou Aqui”
Além dessas falhas estruturais, o clima de rivalidade desnecessário nos bastidores acirrou ainda mais as controvérsias envolvendo Emília Pérez. Em meio à disputa acirrada nas premiações, a treta entre Karla Sofía Gascón, protagonista do filme, e Fernanda Torres, concorrente na categoria de Melhor Atriz, ganhou os holofotes. Durante entrevistas, Gascón criticou abertamente as campanhas de mídia que, segundo ela, favoreciam sua rival, insinuando que o ambiente tóxico das redes sociais impunha um tratamento desigual.
Embora a atriz tenha tentado esclarecer que seus comentários se referiam apenas à toxicidade online e não a Fernanda Torres pessoalmente, o episódio inflamou o debate, refletindo a superficialidade e as disputas de popularidade que frequentemente contaminam o ambiente das premiações.
Felizmente, Fernanda Torres e o elenco de “Ainda Estou Aqui”, que tem os medalhões Selton Melo e Fernanda Montenegro, não responderam nem reagiram na mesma proporção às provocações, mantendo-se elegantes, discretos e preocupados com seus próprios trabalhos e comprometidos apenas com a divulgação do ótimo filme de Walter Salles e que, merecidamente, recebeu o reconhecimento da Academia, com o prêmio de “Melhor Filme Estrangeiro”.
Faltou “tato” e sensibilidade
Para piorar, a direção de Audiard, ao contrário de muitos outros filmes que dirigiu com sucesso, dessa vez demonstra uma clara falta de sensibilidade ao lidar com a complexidade do processo de transição de gênero. Ao transformar a vida de um traficante – que supostamente busca redenção por meio da mudança de identidade – em um mero dispositivo narrativo, o filme reduz toda a profundidade do processo e suas mudanças, que vão muito além da redesignação cirúrgica, a um artifício para escapar das consequências de uma vida marcada pela violência. O resultado é uma narrativa que, em vez de aprofundar o debate sobre identidade e responsabilidade (já que não estamos falando de algo nem um pouco banal), se resume a uma moral simplista e desprovida de reflexão real das consequências e pontos a serem considerados.
Resumo da Ópera
Emília Pérez se apresenta como uma obra “real” que tenta – sem sucesso – transcender a dramática realidade dos fatos para oferecer uma experiência cinematográfica genuína, mas ao se apoiar em exageros musicais, na falta de imersão cultural e na utilização de artifícios narrativos baratos, o filme não só falha em honrar os acontecimentos que pretende representar, como também se torna um desperdício de talento e oportunidade.
Um filme que, mesmo competindo em 13 categorias no Oscar 2025, na minha opinião não merece ser lembrado, apesar de sua pretensão de veracidade, o filme nunca deveria sequer ter existido. É o filme que não precisávamos e que ninguém pediu e que, mais uma vez, perpetua todos os principais estereotipos de Hollywood sobre a cultura latina, que está mais preocupado em “lacrar” do que ser um instrumento de debate de ideias e de exposição da realidade. Infelizmente. Lamento por mais essa oportunidade desperdiçada.