10 Considerações sobre Quando chega nossa vez acaba, de Rafael Simeão ou todo mundo é Almir
O Blog Listas Literárias leu Quando chega nossa vez acaba - contos, de Rafael Simeão publicado pela editora Alfaguara; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, uma seleção de contos que retratam as cacofonias da experiência dos que estão à margem, geralmente uma miragem de desejos que não se podem usufruir:1 - Quando chega nossa vez acaba, como o próprio título indica, trazendo aquela sensação de quem teve o doce roubado da boca. Demonstra, por meio de certo humor ácido, a resiliência de quem percebe que o desejado – e o que lhe é de direito – está tão próximo, contudo, ao mesmo tempo, mantido a certa distância. Os nove contos do livro, de modo geral, destacam a frustração diante de barreiras que impedem uma experiência social ampla, não apenas sob o jugo do trabalho, mas também no acesso à educação e ao lazer. Na verdade, tratam do anticlímax que ocorre quando, a despeito das lutas por melhores condições, tenta-se usufruí-las, e a experiência é ou impedida ou problemática.2 - Provavelmente, o conto que melhor expressa essa sensação é justamente aquele cujo título nomeia o livro. Nele, a experiência não é de todo agradável: uma família trabalhadora, no máximo de seus esforços, consegue passar um final de semana em uma ilha. No conto, o contraste entre expectativa e realidade revela-se a cada linha e vai gerando pequenas frustrações à medida que conhecemos um pouco mais das personagens. Assim, percebemos que o esforço para aquelas férias – as dificuldades, as adaptações e tudo o que precisam ajustar às suas condições – reforça a ideia de estranhamento e não pertencimento àquele espaço.3 - Aliás, cremos que podemos partir desse conto, de suas características e personagens, para delinear, de modo geral, o universo construído por Simeão em sua obra. Nesse sentido, há dois aspectos iniciais que podem – e devem – ser observados: a escolha de seus personagens e a ambientação. Em grande medida, os personagens dos contos de Rafael Simeão integram aquela classe média que muitos chamam de classe C, o mesmo recorte que, em anos recentes, vivenciou certa ascensão, participando da sociedade de consumo a partir de pequenos avanços no poder de compra. Cremos que essa ascensão, enquanto pano de fundo, se apresenta no sentimento de contraste entre expectativa e realidade presente nos contos – e no título. Entretanto, ao entrarem "no salão" para o qual não foram convidados, surge a sensação de que a festa está acabando.4 - Isso se mostra ainda mais atroz em certos personagens que evidenciam essa tensão, como no expressivo número de estudantes que ingressam na universidade – luta de décadas e décadas –, mas que não são absorvidos pelo mercado de trabalho, permanecendo ou desempregados ou em subempregos que não condizem com suas formações. Assim, encontramos no livro uma interessante reflexão social, extremamente relevante para os nossos dias.5 - Mas, como sabemos, em literatura nem sempre importa apenas o que se diz, mas como se diz. Nesse aspecto, os contos preservam certa unidade quando analisamos suas características linguísticas. Há na escrita de Simeão um tom de emergência que se reflete na cacofonia de vozes que se sobrepõem em seus contos. E não como um aspecto negativo, vale dizer. A cacofonia, nesse fluxo, manifesta-se na alternância veloz das vozes das personagens, muitas vezes se sobrepondo umas às outras, exigindo do leitor a mesma agilidade sináptica na troca de perspectivas. Essa sobreposição, parece-nos, reflete justamente a busca por espaço e voz de quem, por muito tempo, foi silenciado(a). Assim, todos precisam falar – nem que seja ao mesmo tempo –, compartilhar seus anseios, sonhos e também frustrações.6 - Aliás, essa característica é responsável por conferir aos contos a forte influência da oralidade – e à escrita de Simeão, uma marca estilística própria. A linguagem oral, com sua sintaxe entrecortada e flexões particulares, não apenas confere identidade à narrativa do autor, como também se apresenta como uma exigência constitutiva das identidades internas das narrativas. Essa oralidade, inclusive, reforça o tom de urgência nos contos, que, em grande medida, falam da ânsia de viver, de desejar e de pertencer.7 - Vale dizer, contudo, que os contos nem sempre acompanham personagens edulcorados. Especialmente Tudo preto se destaca por apresentar a personagem mais distinta entre os nove contos. Na verdade, trata-se de uma imersão do autor em um tipo massificado, carregado de frustrações, ódio e valores nefastos. O conto traça o perfil arquetípico de um neonazista, um típico "nerdola redpill" imerso em uma solidão individualizante que o torna incapaz do convívio social.8 - Muitas das questões que abordamos até aqui, inclusive, conferem aos contos certos ares de crônicas. Em boa medida, há neles o espírito do cronismo, registrando a vida social de uma parcela da população cuja existência e experiências foram, por muito tempo, sublimadas ou invisibilizadas. São contos do cotidiano, pertencen

O Blog Listas Literárias leu Quando chega nossa vez acaba - contos, de Rafael Simeão publicado pela editora Alfaguara; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, uma seleção de contos que retratam as cacofonias da experiência dos que estão à margem, geralmente uma miragem de desejos que não se podem usufruir:
1 - Quando chega nossa vez acaba, como o próprio título indica, trazendo aquela sensação de quem teve o doce roubado da boca. Demonstra, por meio de certo humor ácido, a resiliência de quem percebe que o desejado – e o que lhe é de direito – está tão próximo, contudo, ao mesmo tempo, mantido a certa distância. Os nove contos do livro, de modo geral, destacam a frustração diante de barreiras que impedem uma experiência social ampla, não apenas sob o jugo do trabalho, mas também no acesso à educação e ao lazer. Na verdade, tratam do anticlímax que ocorre quando, a despeito das lutas por melhores condições, tenta-se usufruí-las, e a experiência é ou impedida ou problemática.
2 - Provavelmente, o conto que melhor expressa essa sensação é justamente aquele cujo título nomeia o livro. Nele, a experiência não é de todo agradável: uma família trabalhadora, no máximo de seus esforços, consegue passar um final de semana em uma ilha. No conto, o contraste entre expectativa e realidade revela-se a cada linha e vai gerando pequenas frustrações à medida que conhecemos um pouco mais das personagens. Assim, percebemos que o esforço para aquelas férias – as dificuldades, as adaptações e tudo o que precisam ajustar às suas condições – reforça a ideia de estranhamento e não pertencimento àquele espaço.
3 - Aliás, cremos que podemos partir desse conto, de suas características e personagens, para delinear, de modo geral, o universo construído por Simeão em sua obra. Nesse sentido, há dois aspectos iniciais que podem – e devem – ser observados: a escolha de seus personagens e a ambientação. Em grande medida, os personagens dos contos de Rafael Simeão integram aquela classe média que muitos chamam de classe C, o mesmo recorte que, em anos recentes, vivenciou certa ascensão, participando da sociedade de consumo a partir de pequenos avanços no poder de compra. Cremos que essa ascensão, enquanto pano de fundo, se apresenta no sentimento de contraste entre expectativa e realidade presente nos contos – e no título. Entretanto, ao entrarem "no salão" para o qual não foram convidados, surge a sensação de que a festa está acabando.
4 - Isso se mostra ainda mais atroz em certos personagens que evidenciam essa tensão, como no expressivo número de estudantes que ingressam na universidade – luta de décadas e décadas –, mas que não são absorvidos pelo mercado de trabalho, permanecendo ou desempregados ou em subempregos que não condizem com suas formações. Assim, encontramos no livro uma interessante reflexão social, extremamente relevante para os nossos dias.
5 - Mas, como sabemos, em literatura nem sempre importa apenas o que se diz, mas como se diz. Nesse aspecto, os contos preservam certa unidade quando analisamos suas características linguísticas. Há na escrita de Simeão um tom de emergência que se reflete na cacofonia de vozes que se sobrepõem em seus contos. E não como um aspecto negativo, vale dizer. A cacofonia, nesse fluxo, manifesta-se na alternância veloz das vozes das personagens, muitas vezes se sobrepondo umas às outras, exigindo do leitor a mesma agilidade sináptica na troca de perspectivas. Essa sobreposição, parece-nos, reflete justamente a busca por espaço e voz de quem, por muito tempo, foi silenciado(a). Assim, todos precisam falar – nem que seja ao mesmo tempo –, compartilhar seus anseios, sonhos e também frustrações.
6 - Aliás, essa característica é responsável por conferir aos contos a forte influência da oralidade – e à escrita de Simeão, uma marca estilística própria. A linguagem oral, com sua sintaxe entrecortada e flexões particulares, não apenas confere identidade à narrativa do autor, como também se apresenta como uma exigência constitutiva das identidades internas das narrativas. Essa oralidade, inclusive, reforça o tom de urgência nos contos, que, em grande medida, falam da ânsia de viver, de desejar e de pertencer.
7 - Vale dizer, contudo, que os contos nem sempre acompanham personagens edulcorados. Especialmente Tudo preto se destaca por apresentar a personagem mais distinta entre os nove contos. Na verdade, trata-se de uma imersão do autor em um tipo massificado, carregado de frustrações, ódio e valores nefastos. O conto traça o perfil arquetípico de um neonazista, um típico "nerdola redpill" imerso em uma solidão individualizante que o torna incapaz do convívio social.
8 - Muitas das questões que abordamos até aqui, inclusive, conferem aos contos certos ares de crônicas. Em boa medida, há neles o espírito do cronismo, registrando a vida social de uma parcela da população cuja existência e experiências foram, por muito tempo, sublimadas ou invisibilizadas. São contos do cotidiano, pertencentes à mundanidade do dia após o outro, à luta diária pela sobrevivência. Enfim, são narrativas populares, mas não populistas, diga-se.
9 - Além disso, em todos eles, cada qual com sua forma ou objetivo, o autor procura pincelar os contos com as tintas do estranhamento. Sim, porque em todos há um meio de provocar tal estranhamento. Há algumas interrupções ou cortes como em Quando chega nossa vez acaba que levam ao leitor questionar os acontecimentos. Quando falamos em cortes, dizemos de passagens estranhas de um parágrafo a outro, inserindo contextos semelhantes, mas quase como uma nova dimensão. Em outros casos, a gratuidade das ações e dos rancores, como em Viva os pombinhos, é que levam a tal estranhamento;
10 - Enfim, marcado pela oralidade, pela emergência dos que têm a perspectiva de aproveitar "o baile" sem saber - ou sabendo - que ao irromperem pelas portas do salão - e não sem luta para abri-las, a festa finda. Essa sensação de final de fexta, o anticlímax da quebra das expectativas delineiam o olhar autêntico e lúcido de Simeão que ao cabo entrega-nos um retrato do Brasil contemporâneo, um pouco em suas possibilidades, mas muito mais enquanto aquele devir inalcançável, já que, quando chega nossa vez acaba.