Maria de Medeiros: “Variar universos artísticos é das coisas que mais me apaixona”

Maria de Medeiros integra a peça de Robert Wilson, que parte do universo de Fernando Pessoa e está em cena no São Luiz, entre 6 e 8 de Março. "Tudo o que me propõe um desafio diferente interessa-me", diz a actriz à Time Out.

Mar 5, 2025 - 13:37
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Maria de Medeiros: “Variar universos artísticos é das coisas que mais me apaixona”
Maria de Medeiros: “Variar universos artísticos é das coisas que mais me apaixona”

Pessoa – Since I’ve Been Me, de Robert Wilson, estreou-se em Maio do ano passado, no Teatro della Pergola, em Florença. Entretanto, passou por Paris, Trento e pela província italiana de Trieste. A partir de quinta-feira, 6 de Março, apresenta-se em Lisboa, no teatro São Luiz, sala Luís Miguel Cintra. Criada a partir de textos de Fernando Pessoa, a peça procura evocar o universo pessoano, mas à maneira de Bob Wilson. Dos sete actores em palco, apenas uma é portuguesa e é Maria de Medeiros. A actriz, que também é encenadora, realizadora e cantora, veste aqui a pele de Fernando Pessoa, figura que a acompanha, profissionalmente e não só, de há muito tempo para cá. Mas não é um Pessoa qualquer, é um Pessoa um pouco clownesco, um Pessoa que dança, um Pessoa que canta, um Pessoa que se diverte dentro desse mundo interior”, diz. Em entrevista à Time Out, conta como foi trabalhar com Robert Wilson, como foi voltar a Pessoa, como é fazer teatro e cinema e como é viver ora em cima do palco e à frente da câmara, ora fora do palco e atrás da câmara.

Como é que surgiu a oportunidade de entrares na peça de Robert Wilson?
Foi uma série de acasos. Eu estou sempre a viajar, com idas e voltas para Paris, que é a minha base, e nunca sei o que é que está a acontecer. Apanho as coisas um bocadinho por acaso e uma amiga filósofa brasileira disse-me que o Bob Wilson tinha um projecto sobre Pessoa, no Théâtre de la Ville, que é um teatro que eu conheço bem. É muito atípico, porque, em geral, os projectos chegam a mim, mas eu pensei “Puxa, Fernando Pessoa, com várias línguas… Vou-lhes dizer que estou aqui”. Até porque, muitas vezes, as pessoas nem pensam em contactar-me nas viagens. E foi assim, entrei em contacto com eles, conheci o Bob Wilson e entrei em todo o processo de construção da peça.

O facto de ser uma peça que parte da obra de Fernando Pessoa também foi o que imediatamente te interessou mais?
Claro! Tenho a sensação, como praticamente todos os portugueses, de termos nascido dentro de Fernando Pessoa, na poesia, na linguagem, no universo pessoano. E eu sempre trabalhei muito Pessoa, sempre fui muito solicitada sobre Pessoa, nomeadamente o meu primeiro filme, que é quase uma longa que realizei, foi A Morte do Príncipe, de Fernando Pessoa. Fizemos a peça com o Luís Miguel Cintra, encenada por ele, criada no Festival d’Avignon e depois também apresentada no Festival d’Automne, em Paris. Também a fizemos em duas línguas, em português e francês, e então houve a possibilidade, com a produção do Joaquim Pinto, de fazermos um filme e o Luís Miguel propôs que eu realizasse. Foi uma belíssima experiência realizar esse filme, que é teatro filmado, mas em que se joga justamente com o que é que é filme e o que é que é teatro. Filmámos nos estúdios da Tobis e em condições muito boas, em 35 milímetros, e foi algo de muito importante para mim, de muito marcante, e que estabeleceu uma relação muito profunda com Pessoa. Então, achei muito interessante, depois de tantos anos, voltar ao universo pessoano, se bem que aqui na peça é realmente uma viagem por Pessoa. Percorremos muitos heterónimos e, de forma apoiada a Alberto Caeiro, também se faz uma incursão por Fausto e pelo Livro do Desassossego.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

E como é que descreverias a tua personagem?
São várias nacionalidades – há dois brasileiros, o que acho muito interessante porque ouvimos a língua de Pessoa no português do Brasil, há três italianos, uma francesa e uma portuguesa, que sou eu. E a ideia era explorar toda a heteronímia, mas acabei por ser eu a encarnar o papel de Pessoa. A obra de Pessoa, no fundo, é uma imensa epopeia interior, uma viagem interna, e em toda a obra de Bob Wilson há uma predilecção pelo clown, pelo trabalho do grotesco, mas de uma perspectiva irónica sobre os textos. Acho que essa intuição foi bastante certeira aqui, porque ele optou pela ligação à infância, que está em praticamente todos os heterónimos. Em toda a obra há essa criança que ele deixou para trás e com quem está constantemente, de alguma forma, a dialogar e esse universo infantil. E os heterónimos são como os amigos invisíveis de Pessoa, não é? São um universo interior com personagens que ele criou, mas com quem está sempre, de alguma forma, a brincar, e então há esse lado lúdico que é muito importante na peça. Eu sou um Pessoa um pouco clownesco, um Pessoa que dança, um Pessoa que canta, um Pessoa que se diverte dentro desse mundo interior.

Para entrares na personagem e neste universo, voltaste a debruçar-te sobre a obra de Pessoa?
Sim, absolutamente. Para mim foi belíssimo voltar a ler praticamente tudo, inclusive A Morte do Príncipe, que é um texto que frequentei tanto, e relê-lo depois de tantos anos foi muito bonito. E, claro, o que ressalta é a extraordinária modernidade do texto, porque realmente poderia ter sido escrito agora. É absolutamente universal e intemporal.

Imagino que ao leres os textos hoje, passados esses anos todos, também tenhas encontrado coisas que não encontraste na altura. 
Sim, certamente. É o privilégio de reler os grandes autores, é que evidentemente chegam-nos de forma diferente consoante o momento em que nos encontramos e a capacidade de leitura e sensibilidade que temos no momento. Depois é muito engraçado ver esse lado brincalhão dele, como ele pode defender com unhas e dentes uma posição e a posição exactamente oposta no outro heterónimo. E, no fundo, o que ele está a celebrar é a língua, a língua e o pensamento, mas o pensamento de per si, de alguma forma abstraído dos referentes realistas.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

É uma figura muito complexa. Foi difícil encarnar toda essa complexidade?
Sim, mas há uma leveza, há uma leveza no Bob Wilson e no próprio Pessoa. Curiosamente, sendo dois espectáculos completamente diferentes, há coisas que eu volto a encontrar. Por exemplo, é uma poesia que pede a dança, no sentido em que quando fizemos A Morte do Príncipe esta também era muito dançada. É uma poesia que é tão orgânica para ele, porque no fundo Pessoa tomou a decisão de não viver a realidade ou de ter uma existência mínima na realidade para ter uma existência máxima na sua interioridade e no pensamento. Então, pensar, escrever poesia para ele é orgânico, é onde está toda a vida dele, é onde está todo o erotismo dele. Está tudo na linguagem, na literatura e na poesia. E essa organicidade da língua faz com que o corpo dance. A Morte do Príncipe era muito dançado e aqui também. De alguma forma, essas complexidades e essas contradições resolvem-se simplesmente no facto de as vivermos com o corpo, de as vivermos com o movimento, porque o movimento é complexo.

Há pouco estavas a falar acerca do trabalho de Bob Wilson, que também é bastante visual. Como é que foi trabalhar com ele?
É um trabalho muito particular, porque o Bob Wilson é, a meu ver, um grande artista visual e é um mestre da luz. Acho que poucas pessoas manejam a luz no teatro como ele faz. Mas é também um trabalho de horas e horas para chegar ao resultado de luz que ele pretende. Então, é um trabalho diferente e é realmente interessante para os actores integrarem-se numa perspectiva, acima de tudo, visual.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

E muito dançante.
Sim. [Risos] E muito dançante. Acho que ele, aliás como muitos grandes artistas, tem uns leitmotifs, umas coisas que voltam muito na obra dele, nomeadamente o tipo de maquilhagem que é sempre muito clownesca, muito branco e preto. Então, o que me pareceu também muito interessante neste espectáculo é que é realmente a linguagem de um grande poeta confrontada com a linguagem de um grande esteta e de um artista visual. E ele próprio tem uma linguagem muito definida.

Quais é que foram os maiores desafios durante o processo de criação da personagem?
O desafio é o criar do nada, de elementos muito ténues, porque íamos tentando por aqui, por ali, etc. Mas o Bob nunca tenta nada se não tiver todos os elementos. No sentido em que, por exemplo, os actores, desde o primeiro dia de ensaio, estão completamente maquilhados, vestidos, microfonados. Estão como se estivessem em condição de representação. Se ele tem uma ideia, quer vê-la em luz logo, com os actores na luz certa logo. Há esse lado de imediatez, de ver imediatamente aquilo que busca, mas, por outro lado, é preciso construir dramaturgicamente os textos e isso é realmente um trabalho muito desafiante – estar sempre em condição de representação, mas a partir de tentativas dramatúrgicas.

Tendo em conta que não só representas, mas também realizas e encenas, como é que é estar constantemente a passar de um lado para o outro?
Isso realmente é o que mais me diverte e me interessa no meu trabalho. É essa possibilidade de variação na perspectiva, na posição. E acho que o trabalho criativo está dos dois lados e o actor é um criador também obviamente. E depois, tudo o que me propõe um desafio diferente interessa-me, tenho muita curiosidade. Então, essa possibilidade de variar universos artísticos é das coisas que mais me apaixona.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

E sentes que, em cada projecto, acabas por tirar coisas que te servem enquanto encenadora e enquanto intérprete?
Obviamente! Aprende-se imenso a trabalhar com outras pessoas. Tanto no teatro, mas nomeadamente no cinema, ter podido trabalhar com realizadores tão diferentes, em contextos tão diferentes, foi uma escola incrível. Considero que foi uma sorte imensa ter essas experiências. E aqui há a questão das várias línguas, porque verifiquei que o Pessoa se deixa traduzir muito bem, que perde muito pouca emoção nas traduções, nomeadamente no italiano. E há que dizer que esta produção tem uma grande participação italiana e no italiano ele foi traduzido pelo Antonio Tabucchi, portanto é magnífico. Também no francês há excelentes traduções e pareceu-me muito interessante o espectáculo ser, na maioria, em três línguas. E isso realmente traz qualquer coisa. Acho que nunca tinha feito um espectáculo completamente trilingue. É uma coisa que sempre me interessou muito – como cada língua traz consigo uma certa perspectiva, um certo sabor.

Há aspectos específicos da obra de Pessoa que foste encontrando nas diferentes línguas?
São coisas que se sentem, mas que são difíceis de descrever. E aí também deixo aos espectadores a sua perspectiva sobre isso, como é que se sentem [risos]. Mas sempre que fizemos o espectáculo, tanto em Itália como em França, tivemos legendas. Acho que aqui em Portugal, apesar de também haver legendas, vai ser dos públicos mais poliglotas, que falam várias línguas e que vão poder apreciar essas nuances todas das várias línguas.

O que é que fica mais contigo quando lês Pessoa?
Acho que comparto algo da atitude contemplativa, do diálogo interior, da auto-ironia, que são elementos muito pessoanos.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

Noutras entrevistas que deste, nos últimos anos, disseste que gostas de levar coisas do teatro para o cinema, tal como gostas de levar coisas do cinema para o teatro. Nesta peça, o que é que levaste e tiraste?
São coisas que integrei no geral, mas obviamente aqui há um piscar de olho ao cinema, na direção da comédia musical, dos filmes em branco e preto, dos primórdios do cinema, que são coisas que estão ali em filigrana no espectáculo. Acho que há um certo diálogo, sobretudo com o cinema em preto e branco, mudo, e que induzia a uma certa gestualidade, um exagero na gestualidade, que é uma coisa muito própria do Bob Wilson.

E gostas mais de trabalhar em teatro ou em cinema?
Gosto dos dois, mas considero que o teatro é infinitamente mais difícil e que é também absolutamente necessário para um actor, para um actor voltar a ter consciência do seu corpo, da sua gestualidade, do movimento. Voltar ao teatro é muito necessário.

Acabas sempre por voltar, não é?
Sim, na realidade tem sido isso. Formei-me no conservatório em Paris, portanto a minha formação foi teatro clássico à francesa e em francês foi o que fiz mais, mas por exemplo fiz teatro em Portugal, fiz A Castro com o Ricardo Pais, fiz teatro no Brasil – a Aos Nossos Filhos – e foram experiências muito enriquecedoras, muito interessantes. Sempre representei muitas línguas no cinema, mas fazê-lo no teatro é mais complexo, o teatro exige uma cumplicidade muito grande com a língua que estamos a usar.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

E onde é que te sentes mais confortável? Em cima ou fora do palco, atrás ou à frente da câmara?
Na variação [risos]. Dou-me conta de que sou uma pessoa que encontra a estabilidade no nomadismo, é ao ser nómada que estou estável, é ao passar justamente de um lado para o outro, de uma forma de expressão para a outra, que estou na minha velocidade cruzeiro.

Agora estás a apresentar este espectáculo, depois o que é que se segue? Mais teatro ou mais cinema?
Na verdade, há vários projectos que estão em curso, mas estou a escrever uma nova longa-metragem.

Sobre o quê?
É uma produção do Luís Galvão Teles e é sobre um acontecimento, um tema histórico que tem lugar entre Portugal e Cuba. É uma produção cubana.

Pessoa – Since I've Been Me
© Lucie Jansch

Acabas por tratar várias vezes temas históricos.
Sim, vejo que sou realmente atraída para aí. É tão difícil fazer um filme, são sempre tantos anos de luta que é preciso que o tema que estamos a tratar nos segure, nos leve, nos apaixone e algo que nos pareça absolutamente necessário contar. E tem sido assim, foi assim para Os Capitães de Abril, que foram 13 anos de obstinação e de pesquisa, e depois os filmes que fiz em relação ao Brasil, que foram um documentário e a ficção Aos Nossos Filhos, que tratam a resistência à ditadura militar no Brasil. São temas muito importantes, pelos quais vale a pena passar muitos anos a batalhar.

Achas que é sempre importante voltar, no fundo, ao passado?
Para entender, não é? Acho que neste momento está tão evidente a nossa falta de memória, para deixar voltar a acontecer coisas às quais assistimos tetanizados, paralizados de incredulidade. Como é que é possível que não nos lembremos do que significavam posições políticas de ódio extremo? Como é que é possível que a nossa memória seja tão curta? Portanto, é claro que é necessário voltar ao passado para entender o presente e tentar salvaguardar alguma coisa no futuro.