As mil faces do ijexá: como a batida ancestral influencia o afoxé e os ritmos atuais
Gilberto Gil, Clara Nunes e BaianaSystem são só alguns dos nomes que se inspiram pela batida ancestral. The post As mil faces do ijexá: como a batida ancestral influencia o afoxé e os ritmos atuais appeared first on NOIZE | Música do site à revista.

De África para o Brasil, dos terreiros para as ruas. Os afoxés, em sua definição mais clássica, são candomblés de rua. Assim definiu um dos mais importantes pesquisadores da cultura popular brasileira, o folclorista carioca Edison Carneiro (1912-1972). Compondo um movimento cultural e político da negritude nacional e se estendendo por todo o território brasileiro, o afoxé remonta ao século XIX.
Símbolo da consciência e da luta racial, o afoxé é um coletivo que tem por característica musical os toques do ijexá, estilo musical que necessariamente acompanha os ritos — quando religiosos — e os cortejos — quando os grupos abrem as portas dos terreiros e ocupam as ruas. Assim, o ijexá chega aos ouvidos do público antes da virada do século, com os primeiros registros partindo de Salvador.
“O ritmo vem de Ilesha, uma cidade na Nigéria onde predomina o culto de Oxum. Por isso constitui a base rítmica da maioria das cantigas para Oxum. É importante ressaltar que este ritmo significa dança em si”, escreve Angela Lühning em Música: Coração do Candomblé (1990).
Assim, o ijexá é muito mais do que um ritmo: é uma conexão profunda entre o sagrado e o festivo, entre a ancestralidade africana e a modernidade brasileira. Nascido nos terreiros de candomblé, ele ultrapassou os limites do religioso para se transformar em uma das bases mais ricas da música popular brasileira, influenciando gêneros e artistas em diferentes épocas.
Origem e essência: dos terreiros às ruas
O ijexá tem suas raízes no culto aos orixás, em especial Oxum, nos terreiros de candomblé da Bahia. De origem nigeriana, o ritmo é executado em terras brasileiras em tamborins, agogôs e xequerês, carregando uma cadência singular que evoca a energia e a doçura de Oxum.
Segundo a antropóloga Goli Guerreiro, “o ijexá ganha popularidade justamente porque o afoxé está nas ruas desde o final do século XIX.” Grupos religiosos e comunidades negras encontraram no Carnaval uma forma de promover a cultura afro-brasileira. “Os negros baianos sempre utilizaram o Carnaval como forma de fazer política”, afirma a pesquisadora. Entretanto, essa presença não era vista com bons olhos pelas autoridades, que por vezes, os reprimiram, e os classificava como manifestações “selváticas”.
Apesar das adversidades, o ijexá tornou-se parte da “paisagem sonora de Salvador”. A popularidade cresceu a ponto de, nas décadas de 1970, o ritmo subir aos trios elétricos com artistas como Gilberto Gil e os Novos Baianos. “O Gil, ao retornar de Londres, fica indignado com a cena de poucas pessoas acompanhando os Filhos de Gandhy e, em 1971, participa do bloco e lança uma música que celebra o grupo e suas raízes”, relembra Goli.
Xiko Lima, diretor do afoxé Filhos de Gandhy, conta que, apesar dos afoxés terem raízes no candomblé, representando a parte lúdica e social das tradições religiosas, o Filhos de Gandhy são uma exceção, pois não surgiram de um terreiro. Fundado em 1949, o bloco “surge como um movimento do povo, em um momento de reconstrução social e cultural do Brasil pós-guerra”. Ainda assim, para ele, “o afoxé é a oportunidade de brincar e celebrar fora do portão do terreiro”.
A fusão com a MPB
Um marco importante na história do ijexá foi sua mistura com outros gêneros musicais no movimento Tropicalista. Goli explica que, antes da década de 1970, os trios elétricos eram puramente instrumentais. “Os Novos Baianos revolucionaram ao colocar voz no trio elétrico, sendo Moraes Moreira o primeiro cantor de trio. Eles misturaram ijexá com rock, MPB e outras influências, criando uma matriz híbrida e moderna da música popular brasileira.”
Essa fusão deu nova vida ao ritmo, levando-o a dialogar com um público mais amplo. “O ijexá entra nesse repertório de matrizes rítmicas e vai direto na alma brasileira, acostumada às cantoras de rádio e aos ritmos dançantes”, afirma.
Arquivo: 40 anos atrás, estreava o trio elétrico dos Novos Baianos
Entram neste movimento artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil. No álbum Refavela (1977), Gilberto Gil celebra a ancestralidade africana em canções como “Ilê Ayê”, trazendo o ijexá para o centro das discussões culturais.
Nomes como Clara Nunes e Maria Bethânia também o abraçaram. Clara, conhecida por sua devoção às raízes afro-brasileiras, interpretou clássicos que exaltam os orixás, enquanto Bethânia inseriu elementos do ijexá em discos que se tornaram referência no diálogo entre a MPB e a música de terreiro.
O movimento nasce, mas não para na Bahia. “Em Pernambuco ele surge inspirado por Salvador. Inclusive, a pessoa que toma esse protagonismo no final da década de 70 é o mestre Zumbi Bahia, baiano, com alguns pernambucanos, mas com um contexto diferente do brincar”, explica Fabiano Santos, presidente do Afoxé Alafin Oyó. Inclusive, o grupo acaba de criar um inventário dos afoxés do Estado, ainda pendente de reconhecimento, para registrar e organizar informações sobre os grupos em atividade.
Fabiano contextualiza o momento atual dos afoxés de Pernambuco como movimentos pela luta racial. “Para ser Afoxé em Pernambuco, ele precisa ser de movimento negro, precisa ter um trabalho de combate ao racismo na comunidade e pautar as questões raciais a partir da formação da música, da dança e do canto”.
Aliás, esse é ponto que Gilberto Gil afirma no documentário The Rhythm of Gil (2022), dirigido por Anderson Soares. “É de uma importância extraordinária para a luta pela emancipação do negro no Brasil”.
Na música atual
A cantora e percussionista soteropolitana Karina Buhr tem atração pelos cortejos desde a infância, primeiro nas ruas de Salvador e depois em Olinda e Recife. “O ijexá faz parte do meu imaginário de sons de uma maneira bem forte, isso aparece nas minhas composições e na minha maneira de tocar percussão”. Ela pontua que “tanto o ritmo (ijexá) quanto o cortejo (afoxé) são vivos, são ancestrais e contemporâneos”.
Esse dinamismo pode ser percebido no trabalho de grupos que vão desde BaianaSystem, que atualizam o ijexá com influências de dub, reggae e música eletrônica, aproximando-o de uma nova geração de ouvintes, até o grupo pernambucano de rock Devotos. Não há limites para o uso das cadências.
“É muito viva a referência do Ijexá, do movimento de afoxé, que remete às festas populares, às manifestações culturais de matriz africana. É um ritmo muito forte, religiosamente falando, mas também ele tem esse balanço suingado. Toda faixa que bota o Ijexá fica gostosa de se ouvir”, explica Japa System, percussionista do BaianaSystem.
Outro exemplo é o disco Afoxés de Pernambuco (2019), que documenta a pluralidade dos afoxés Alafin Oyó, Ylê de Egbá e Filhos d’Ogundê. Segundo Fabiano Santos, presidente do Alafin Oyó, “cada afoxé traz suas sutilezas, diferenças entre nações, mas também em uma mesma nação, existem maneiras diferentes de tocar o mesmo ritmo”. Essa pluralidade reforça a riqueza cultural do ijexá e sua capacidade de se reinventar.
O que escutar para entender o ijexá
Para explorar esse universo, o produtor musical Gilberto Badá, conhecido pelo seu trabalho junto ao Badauê, e a multiartista Karina Buhr indicam as canções desta playlist:
Esta matéria foi publicada originalmente na edição da Revista Noize que acompanha o vinil “Senhora da Terra” (1978), de Elza Soares, lançado em 2024.
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