Mulheres contam suas histórias no baque do Maracatu dos anos 1990

Cristina Barbosa, Karina Buhr, Neide Pilger e Virginia Barbosa foram algumas das figuras determinantes para a renovação do Maracatu de Baque Virado nos anos 1990. The post Mulheres contam suas histórias no baque do Maracatu dos anos 1990 appeared first on NOIZE | Música do site à revista.

Mar 8, 2025 - 18:42
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Mulheres contam suas histórias no baque do Maracatu dos anos 1990

Para quem visita o Recife hoje e vê Maracatus com facilidade na área central da capital pernambucana, pode ser difícil imaginar que 30 anos atrás não existia um acesso tão aberto às agremiações. Na virada da década de 1980 para 1990, visitantes até podiam frequentar seus espaços e assistir aos ensaios dos grupos, mas participar efetivamente da brincadeira era quase que exclusividade dos membros das comunidades em que as agremiações estavam fixadas.

Entre os forasteiros de classe média que conquistaram a benção dos maracatuzeiros para participar do brinquedo nessa época estavam Cristina Barbosa, Karina Buhr, Neide Pilger e Virginia Barbosa. Através das suas atuações no Maracatu Estrela Brilhante do Recife, especialmente na década de 1990, elas foram determinantes para a renovação do Maracatu de Baque Virado, também conhecido como Maracatu Nação, mas por serem mulheres, tiveram um caminho mais difícil.

As quatro fazem parte de um pedaço da juventude de classe média do Recife que estava interessada em conhecer melhor a cultura popular da sua cidade, antes mesmo de o Manguebeat popularizar o segmento. Brinquedos como o Maracatu de Baque Virado começavam timidamente a ir além de suas comunidades para circular pelo centro da cidade, num movimento de difusão reforçado também por grupos como o Nação Pernambuco, que foi criado enquanto espetáculo cênico e levado para muitos palcos em 1989. O sucesso desse último projeto o transformou em um grupo permanente, que gravou o LP Batuque da Nação (1989), tido como o primeiro disco inteiramente dedicado à música de maracatu. 

As diversas origens dos artistas que apresentavam o Nação Pernambuco revelavam que essa mistura também poderia trazer bons frutos para as agremiações das comunidades – desde que fossem mantidas as tradições. Ou seja, começava a existir brechas para pessoas de fora se inserirem nos maracatus, mas algumas regras eram sagradas. Como boa parte dos maracatus estão ligados ao culto afro-brasileiro conhecido como Xangô Pernambucano, cujo tabu religioso considera que as mulheres têm corpo “aberto” durante o período menstrual, as agremiações vetavam a participação delas no batuque para não atrair energias negativas.  

Foi dentro desse contexto que as meninas tiveram suas primeiras vivências como ouvintes no maracatu. No caso das irmãs Cristina e Virgínia Barbosa, a primeira experiência foi durante um ensaio do Maracatu Nação Elefante. A sede ficava no bairro da Boa Vista, no centro do Recife. Cristina ainda não sabia como funcionava o brinquedo, mas lembra de ter ficado especialmente encantada com a Princesa Rosinete, que, nos ensaios, coordenava o grupo de músicos. Por conta desse primeiro contato, de imediato, nem passou pela sua cabeça que pudesse existir qualquer impedimento para as mulheres. 

Nos anos de 1991 e 1992, a cantora Karina Buhr também tocava instrumentos informalmente nas sambadas e apresentações de Carnaval do Piaba de Ouro, Maracatu de Baque Solto fundado por Mestre Salustiano. Porém, nos cortejos oficiais, ela saía apenas dançando, como Baiana, que era uma função comum das mulheres, apesar de muitos homens fazerem esse papel também. Até mesmo em outros brinquedos de terreiro da família acontecia algo parecido, como no Cavalo Marinho Boi Matuto. Karina lembra de uma noite de 25 de dezembro, quando algumas pessoas estavam gravando o Boi Matuto, e na hora em que ela e a amiga Manuela Veloso entraram na roda pra fazer o movimento conhecido como “mergulhão”, Salu parou tudo e adiantou um recado para evitar qualquer burburinho: “Elas estão batendo mergulhão hoje porque é noite de festa. Pra vocês não saírem por aí dizendo que viram mulher no brinquedo de Salu”.

Encontro de batuqueiras

Esses episódios mostram que as mulheres tinham capacidade de assumir quaisquer funções dos brinquedos populares, só precisavam encontrar um espaço que estivesse disposto a renovar as tradições. Pode-se dizer que o AngaAtãnàmú funcionou como um laboratório para elas até que esse dia chegasse. O grupo foi criado em 1991 pelo percussionista Eder “O” Rocha, que pouco depois passou a integrar a banda Mestre Ambrósio.

Sua fundação aconteceu quando o músico estava no seu último ano de percussão erudita, no Centro Profissionalizante de Criatividade Musical do Recife, e precisou cuidar de um grupo de câmara com alunos mais novos do curso, como Neide Alves Pilger, Maurício Badé (que depois também foi para o Mestre Ambrósio), Jorge Martins (da Cascabulho) e Ricardo Gomes (fazia parte do Nação Erê). Esses três últimos moravam em algumas comunidades do Recife, onde viviam as tradições populares urbanas da cidade, por isso, seu repertório também contemplava esse universo. 

Para a parte melódica do grupo, Eder convidou as irmãs Cristina e Virgínia Barbosa, que estudavam violão no Centro. Fora de lá, esses nomes deram continuidade ao AngaAtãnàmú com uma proposta mais enfática de difundir a percussão brasileira através de suas tradições. Foi assim que Cristina e Virgínia também passaram para a percussão. Com o restante do grupo e outros amigos, passaram a visitar os brinquedos populares não só do Recife, como também os da Zona da Mata Norte de Pernambuco, como o Maracatu de Baque Solto e o Cavalo Marinho. Nessas andanças, conheceram Karina Buhr, que começou a tocar percussão com eles nos arrastões de rua do grupo. Sem ela, eles também faziam apresentações de palco, como o show de abertura para Chico Science & Nação Zumbi, no primeiro festival Abril Pro Rock, em 1993. 

“Para mim, o que pode ser considerado uma fragilidade feminina [a menstruação] é justamente o seu forte, porque representa o fluxo da vida. E, na minha concepção, o Baque Virado é exatamente isso: ele toca para os eguns, para reverenciar seres que já viveram e deixaram o seu legado. É a relação do fluxo de olhar para trás pra poder seguir em frente e, ao meu ver, a mulher faz parte desse processo. Mas, pra que elas entrassem no Maracatu, de fato foi preciso insistência e a contribuição de pessoas com a cabeça um pouco mais aberta para olhar a tradição como fluxo”, observa Eder.

A brecha veio na fase de reestruturação do Maracatu Nação Estrela Brilhante do Recife, em 1992. Nesse momento, o artista plástico Lourenço Molla comprou de Mestre Cabeleira os poucos pertences que restavam da agremiação. O mestre já estava muito velho, com dificuldades financeiras, não conseguia botar o Estrela Brilhante do Recife na rua há muitos anos e não tinha um sucessor. Para dar continuidade ao brinquedo, Molla se tornou o novo dono do Estrela Brilhante e convidou o Mestre Walter França e Marivalda Maria dos Santos para assumirem as funções de Mestre de Apito e Rainha. A situação da agremiação ainda era tão precária que Molla precisou comprar tambores do Mestre Luiz de França, da Nação de Maracatu Leão Coroado e estava atrás de batuqueiros para comandar os instrumentos. Foi quando conheceu Jorge Martins e abriu as portas do Estrela Brilhante do Recife para ele e o restante do AngaAtãnàmú, inclusive as meninas. 

“Não foi fácil convencê-los. Molla já vinha quebrando bastante a tradição na parte estética, então eles achavam que o restante tinha que se manter original, mas não tiveram muita escolha. Na pobreza que estava, só o espírito espartano feminino pra segurar a onda. Os batuqueiros dos anos de 1990 tocavam com um cigarro na mão e bombo na outra e iam embora, só apareciam tempos depois. Com a gente, eles tinham quatro batuqueiras firmes. A gente ia até pra floresta de Pau Amarelo atrás de madeira de macaíba pra gente construir novos bombos”, lembra Virgínia.

A necessidade de bombos novos surgiu após Mestre Luiz de França pedir os seus tambores de volta, através de uma disputa judicial que fez Molla desistir do Estrela Brilhante em 1995. A partir de então, Marivalda passou a concentrar as atividades como Rainha e Presidente da agremiação, cuja sede passou para a casa dela, onde fica até hoje, na comunidade do Alto José do Pinho.

A prosperidade da força feminina

Os entraves que envolviam o Estrela Brilhante do Recife nessa época incluíam também os problemas de saúde de Marivalda. Virgínia e Cristina, nesse período já estudantes de música na UFPE, foram então pesquisar mais a fundo o histórico da agremiação. “Marivalda sabia que tinha alguma coisa espiritual que não conseguia identificar. Ela estava cultuando orixás, mas o Maracatu parecia querer algo mais. Fomos pesquisar mais por interesses práticos do que acadêmicos, porque estávamos apanhando sem saber o porquê. Assim, descobrimos que a Nação Estrela Brilhante do Recife foi fundada em 1906, pelo Mestre Cosmo [Cosme Damião Tavares], e ele era da Jurema, por isso reverenciava caboclos e entidades, como o Mestre Cangaruçu, que hoje dá nome a um dos bombos de lá”, comenta Virgínia. A partir dessas informações, Marivalda consultou o seu Pai de Santo, que a instruiu a também reverenciar a ancestralidade do seu Maracatu para destravar o caminho.

As irmãs fizeram pesquisas no Museu da Imagem e do Som do Recife e descobriram que o Estrela Brilhante do Recife também tinha toadas e baques particulares. Elas mostraram as gravações para o Mestre Walter que, embora nunca tenha falado sobre o assunto, passou a trazer essas referências antigas para o Maracatu através de novas toadas e baques, como o Baque Malê e o Baque de Arrasto. Carnavalesco nato, o Mestre ainda trouxe alguns elementos do samba e dos afoxés, como a parada e os agbês, que, mais tarde, foram adotados também pelas demais agremiações, sendo esse último um instrumento, inclusive, tocados principalmente por mulheres.

Karina lembra que o Mestre Walter era especialmente cuidadoso e exigente, na mesma medida, com as meninas. “Ele queria ver a gente tocando bem e se orgulhar disso. E a gente se orgulhava também das bolhas e calos nas mãos, do ombro em carne viva – o talabarte era corda de sisal e não podia também cruzar no peito, tinha que estar pendurada no ombro em que o bombo está. Lembro de Walter falando: ‘É a arte entrando’. Ele defendia a gente a todo momento, porque sempre existiam situações de estranhamento. Uma vez vivi uma situação de me tirarem o instrumento, não do Estrela Brilhante, esse espaço já era meu, mas no primeiro encontro de Maracatus regido por Naná Vasconcelos no Marco Zero”, diz ela, que ficou no Estrela Brilhante até 1996. 

Neide Pilger também passou por situações parecidas. “Havia saídas tocando pelas comunidades e Walter sempre nos colocava no meio do Batuque para os homens não nos tocarem. Uma vez, teve um que puxou o meu cabelo. Houve um estranhamento tanto dos batuqueiros, quanto da comunidade, mas depois criaram um carinho por nós. Ganhávamos até refrigerante!”, reforça Neide, que ficou no Estrela Brilhante do Recife até 1999 e hoje segue como pedagoga musical em Berlim, onde criou o Maracatu-Treffen. 

Segundo Cristina, a evolução delas como batuqueiras também é reflexo da conexão com a comunidade. “A aprendizagem musical na rua é coletiva e cada um se desenvolve no seu tempo. Quando a gente começou com Walter, a gente foi primeiro lá pra trás com o Marcante. Levou anos até eu ir lá pra frente e fazer o repique, mas enquanto eu estava lá atrás, tentando acertar as batidas, não fui excluída. Havia um lugar pra mim e isso foi muito importante”, observa ela, que hoje também segue como educadora musical e pesquisadora, assim como Virgínia, que atualmente é doutoranda em etnomusicologia na UFRJ. Elas permaneceram na agremiação até 2004.

Todas essas novidades de gênero, estéticas e religiosas do Estrela Brilhante do Recife o fizeram perder muitos pontos nas competições do início dos anos de 1990. Com o tempo, as características distintas das agremiações passaram a ser respeitadas como o estilo de cada Maracatu. Depois de ganhar diversos Carnavais, gravar disco e fazer turnê pela Europa no início do anos 2000, a prosperidade alcançada pela Nação Estrela Brilhante do Recife se tornou um exemplo de que a experiência em cada Maracatu é excepcional. Porém, dessas singularidades nascem transformações coletivas, e a passagem das primeiras batuqueiras pelo Estrela Brilhante do Recife expandiu os limites do Maracatu de um modo geral. “

Contribuímos para evoluções e revoluções nos baques e também fomos revolucionadas por eles”, conclui Karina. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 153 da Revista Noize que acompanha o vinil “Samba Esquema Noise”, do Mundo Livre S.A., lançado em 2024.

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