A voz delas: as mulheres que ajudaram a compor a música brasileira
De pioneiras pouco lembradas a casos de apagamentos deliberados, a história das compositoras brasileiras precisa ser sublinhada. The post A voz delas: as mulheres que ajudaram a compor a música brasileira appeared first on NOIZE | Música do site à revista.

Colaboração: Renan Guerra
“Elza, minha deusa! Aqui é a Rita Lee, sua súdita. É que meu santo baixou e escreveu uma letra pra louvar você”. É com essas palavras que Elza Soares recebeu a canção “Rainha Africana”. Apesar da humildade da compositora de atribuir a criação aos santos, essa foi uma das últimas letras de Rita Lee, escrita cerca de um mês antes do diagnóstico de câncer. Musicada por seu marido e parceiro Roberto de Carvalho, a faixa integra No Tempo da Intolerância (2023), o último disco de estúdio de Elza.
Após receber um convite de Décio Cruz, da Warner Chapell, para participarem do projeto, Roberto perguntou a Rita se ela toparia fazer uma música. “A Rita se entusiasmou no ato, o que não era muito comum. Mas adorávamos a Elza, portanto ela começou a escrever a letra e, em pouco tempo, já estava pronta. Me mostrou, fui para o estúdio, lá em casa mesmo, e compomos a música. Mostrei pra ela [Rita], fizemos adaptações, gravamos no iPhone mesmo, sem grandes elaborações, e mandamos. A Elza recebeu e mandou mensagem dizendo que adorou, que a Rita tinha lido a alma dela”, conta Roberto de Carvalho.
Infelizmente, a rainha do rock não pôde ouvir o resultado final: “Infelizmente não deu tempo, mas tenho certeza que teria adorado. Ficou maravilhosa a gravação, um épico à altura dessa fabulosa Rainha Africana”, diz Roberto.
O objetivo de Elza em seu derradeiro álbum de estúdio foi trazer luz às composições de mulheres. Pitty também escreveu uma canção dedicada a ela, “Feminelza”. Composições de Dona Ivone Lara (“No Compasso da Vida”), Josyara (“Mulher pra Mulher (A Voz Triunfal)”, com parceria de Elza) e Isabela Moraes (“Quem Disse”) são contempladas no repertório. A maior parte das letras do disco, inclusive, é da própria Elza Soares, retiradas de seus diários e cadernos pessoais. Trata-se de uma celebração à artista também por seu talento com os versos.
Além de ser um dos álbuns mais íntimos de Elza, justamente por abraçar sua faceta compositora, No Tempo da Intolerância é um registro de criação feminina coletiva. A prática, muito associada a homens na música, vem sendo mais atribuída à nossa vivência – o que não deixa de ser um avanço, levando em conta que no início do século XX era ainda mais difícil encontrar registros de composições assinadas por mulheres, o que não significa que elas não fossem participativas na produção musical.
Muito pelo contrário. O samba de roda e os cantos de trabalho do Recôncavo Baiano e do Vale do Jequitinhonha são exemplos de criação coletiva feminina. Remetem, por exemplo, às cirandas do Pernambuco no século XVIII, formadas por mulheres que aguardavam os pescadores à beira mar para trabalhar o peixe.
Hoje, há mulheres compondo juntas em todos os gêneros musicais, desde o coletivo de rap Rimas & Melodias (Tássia Reis, Alt Niss, Drik Barbosa, Karol de Souza, Mayra Maldjian, Stefanie e Tatiana Bispo) até o projeto sertanejo As Patroas, de Marília Mendonça e Maiara e Maraisa. Apesar disso, ainda há muito o que evoluir para a criação feminina ser reconhecida com direito à arrecadação. As feminejas são as únicas mulheres que compuseram integralmente canções entre as mais tocadas em streamings em 2022, segundo o Ecad (“Presepada” e “Todo mundo menos você”).
Outro dado curioso: das 10 músicas mais tocadas em streamings que constam a palavra “mulher” no título, apenas duas foram compostas por mulheres, ainda assim, em parceria com outros homens (Luisa Sonza, com “Mulher do ano xd” e Day & Lara, com “Mulher Maravilha”). A mulher como musa, vista por outro olhar que não o seu, ainda é padrão entre as canções mais ouvidas do país.
Cá entre nós
A pesquisadora da Unicamp, Ana Carolina Murgel, a Carô Murgel, é responsável por levantar uma cartografia de compositoras brasileiras. A pesquisa começou contemplando mulheres do século XX e, com o aprofundamento nas bases de dados, foi se imbricando também do século XIX até os dias atuais. Carô revela que, inicialmente, esperava juntar cerca de 900 nomes – para sua surpresa, esse número saltou para 7 mil – e contando.
Isso mostra como a memória da música brasileira não valoriza suas mulheres: não é que elas não estivessem lá – elas estavam, ainda que em minoria – mas, muitas vezes, tiveram suas autorias não reconhecidas ou postas em xeque, isso quando não precisaram se esconder atrás de pseudônimo masculino para não serem “mal vistas”.
A falta de rastros dessas compositoras é um desafio para quem pesquisa a participação feminina na música brasileira. Carô Murgel conta que se deparou com canções assinadas apenas por “uma jovem fluminense” ou até mesmo por uma “amadora”. Muito pouco se sabe sobre essas mulheres porque não havia interesse biográfico, sequer de registrá-las.
Ser artista, afinal, não necessariamente significava ser livre para exercer o fazer artístico, para torná-lo um ganha-pão ou ser reconhecida. Para Carô, muitas canções que passaram para a posteridade como “anônimas” ou de “tradição popular” foram criadas por mulheres.
Carô Murgel também cita a dificuldade da própria mulher em se reconhecer compositora, escritora.
“A vida inteira você tem que provar sua capacidade, a vida inteira tem de fugir do assédio, muitas vezes dentro de casa. A gente passa a vida inteira tentando nos livrar do que a gente não quer. E, naquilo que a gente quer, somos subvalorizadas. Nós mesmas às vezes duvidamos da nossa capacidade de criação, porque ‘nunca está bom’, porque tudo tem que ser muito melhor. E essa construção sobre ser mulher vem do patriarcado”.
A pesquisadora lembra que, na etimologia de patrimônio, “patri” remete a pai, e “mônio”, do latim monium, é “aquilo que se recebe”. O que se recebe do pai é material, enquanto o que se recebe da mãe (“matri”) remete ao matrimônio. O simples fato de a mulher se casar e adotar o nome do marido dificulta a catalogação de mulheres que eram compositoras ativas antes do casamento – e muitas vezes abandonaram a carreira para se dedicarem aos cuidados da casa.
À mulher, ficava o cuidado com o casamento, mas nem sempre seu legado. Na união de homens e mulheres músicos, era comum ver composições integral ou parcialmente feitas por mulheres receberem apenas o título do marido. Levar “um violão debaixo do braço”, como já cantou Nara Leão, não era bem visto pela classe média porque o instrumento estava associado à malandragem. À mulher, cabia apenas tocar piano, preferencialmente da casa para dentro.
“Existe aí uma questão de classe social, especialmente no início do século. Essa moral, que diz que as mulheres não podem ter uma vida pública, é a moral burguesa. A aristocracia não se preocupa tanto com isso, vide exemplos como Marília Baptista, que começou a tocar violão na rádio aos 14 anos, e Maysa, ambas netas de barões. Essa moral está na classe média, onde estavam muitas dessas compositoras”, afirma Carô.
Nas classes mais baixas, essa moral não era imposta da mesma forma, pois, antes de tudo, a mulher também precisava sair de casa para trabalhar e sustentar os filhos. Exemplo é Dona Dalva Damiana de Freitas, que fundou o Samba de Roda Suerdieck. O nome faz referência à fábrica de charutos Suerdieck, onde ela trabalhava enrolando o fumo. Nos intervalos, juntava-se com as colegas de ofício e tiravam o ritmo do batuque das caixas de charuto. Seu samba de roda era feito na rua – Dona Dalva conta que o samba era feito tradicionalmente da casa para dentro.
Além de Dona Dalva, entre as mais de 7 mil compositoras catalogadas na pesquisa de Carolina Murgel, há uma parcela considerável de mulheres pretas. Muitas delas vêm fácil à memória, como a própria Elza Soares ou Dona Ivone Lara, Inhana, Alcione, Margareth Menezes, Luedji Luna, Iza, Josyara, entre muitas outras.
O problema reside, novamente, no apagamento de muitas outras mulheres que, por anos, não estiveram proporcionalmente representadas na mídia, ainda que fossem participativas na formação da nossa música. “A quantidade de mulheres que são apagadas ou que nem se sabe que são compositoras é enorme”, diz a pesquisadora.
Com o passar do tempo, outras mulheres se preocuparam em recuperar e eternizar a composição feminina. Um dos primeiros registros fonográficos brasileiros que contam integralmente com letras compostas por mulheres é o álbum Inezita Apresenta, de Inezita Barroso, lançado em 1958.
Entre as letras, está “Rainha Ginga”, de Leyde Olivé e “Chuavarada”, de Zica Bergami. Outra canção de Zica que Inezita costumava cantar é “Lampião de Gás”, que retrata o impacto causado pelo processo paulistano de modernização: “Minha São Paulo, calma e serena / Que era pequena, mas grande demais / Agora cresceu, mas tudo morreu / Lampião de gás, que saudades me traz…”.
Sobre o mote inovador de Inezita Apresenta, a cantora foi categórica: “Ninguém queria gravar as composições das mulheres. Isso é muito injusto. Por que não?”, disse em entrevista a Pedro Alexandre Sanches, publicada no site Farofafá, em 2012.
Coragem, meu bem
Muitas mulheres ocupam lugar de pioneirismo na música. Vale lembrar da norte-americana Sister Rosetta Tharpe, mulher preta e precursora do rock’n’roll. Por aqui, o primeiro rock gravado no também viria pelas mãos delas: ninguém menos que Nora Ney. Apesar disso, não é incomum ver Cauby Peixoto ser reconhecido como o primeiro cantor a gravar um rock no Brasil. Na verdade, Cauby gravou o primeiro rock composto originalmente em português – “Rock’n’roll em Copacabana” (1957) – mas, dois anos antes, Nora já havia lançado uma versão em português do sucesso norte-americano “Rock Around The Clock”, rebatizada de “Ronda das Horas”.
A pianista Carolina Cardoso de Menezes é outra pioneira do rock nacional pouco lembrada. Em 1957, ela lançou sua composição “Brasil Rock”, espécie de choro’n’roll tocada ao piano. Esse é o segundo rock instrumental feito no país – o primeiro foi a versão instrumental da mesma música que Nora Ney gravou, dessa vez chamada de “A Ronda das Horas”, interpretada pelo grupo Frontera, em 1955.
Já o primeiro samba gravado, “Pelo Telefone”, foi registrado por Donga em 1916, mas pesquisadores contestam a autoria. Entre a lista de possíveis colaboradores está Tia Ciata. Sabe-se que a música foi composta nas rodas de samba promovidas em sua casa.
O descrédito dado à autoria de mulheres é ainda mais evidente quando elas começam a compor muito jovens. Carô cita Fátima Guedes, compositora de “Passional” e “Mais uma boca”. Quando estreou, aos 15 anos, muitos duvidaram de sua capacidade de elaborar temas complexos sendo tão jovem. Quando finalmente foi reconhecida, a mídia a taxou de “Chico Buarque de saias” – como se a genialidade feminina precisasse ser comparada à do homem.
Mesmo a mídia especializada contribuiu para o apagamento de mulheres na música brasileira. Por muito tempo, o reconhecimento artístico era atribuído em maioria aos homens, enquanto as próprias redações de jornais e revistas de música eram majoritariamente masculinas. O resultado é um ciclo vicioso que se fecha para a diversidade.
Na lista de 100 maiores músicas brasileiras pela Rolling Stone Brasil, por exemplo, apenas Dolores Duran e Rita Lee figuram entre as mulheres compositoras. Isso reflete a atenção desigual que a mídia e a história da música popular dão para produções de homens e mulheres.
Atualmente, vê-se uma tentativa de publicações musicais em rever situações de apagamento, resenhando álbuns de mulheres para alçá-los à sua devida importância ou revisando listas de canções mais influentes incluindo produções femininas, como fez a Pitchfork.
Mas, sem dúvidas, ainda há muito o que evoluir: dos 4 milhões de compositores titulares registrados no Ecad, apenas 10% são mulheres. A arrecadação de direitos autorais ainda é esmagadoramente masculina, como aponta o relatório Mulheres na Música 2023, produzido pela instituição.
Pouco a pouco, as lacunas vão sendo preenchidas e mais espaços vão sendo ocupados: somente em 2022, foram 36 mil novas compositoras cadastradas na base de dados, número considerável levando em conta os anos de apagamento nos registros da indústria fonográfica. O número também reflete na maior conscientização de mulheres sobre a proteção de direitos autorais e a profissionalização de suas criações.
Falando em proteção de direitos autorais, não por acaso, a preocupação com o assunto no Brasil começou por obra de uma mulher: Chiquinha Gonzaga foi uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Autores de Teatro (SBAT), ainda em 1917, embrionária das entidades associativas de artistas.
A própria Elza Soares foi vanguarda, ao se tornar a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, desbravando novos lugares para a mulher na música. “Se tem alguém que passou por todas as dificuldades possíveis sobre ser mulher, é a Elza. E ela saiu por cima, como uma fênix”, diz a Carô.
Elza, Carolina Cardoso de Menezes, Nora Ney e Rita Lee comprovam e representam o pioneirismo de compositoras que ajudaram a escrever a história da música popular brasileira. A importância dessas artistas deveria ser celebrada por todos nós.
Na conversa com Carô, ela relembra Um Teto Todo Seu, no qual Virginia Woolf escreve: “Haveria sempre aquela afirmativa – você não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo – contra a qual protestar e ser superada. Para as musicistas, imagino, é ainda hoje ativo e venenoso ao extremo”. Contrapondo todas as perspectivas, essas mulheres seguiram em frente. E muitas outras também seguirão.
Esta matéria foi publicada originalmente na revista Noize #140, lançada junto com o vinil de “No Tempo da Intolerância”, de Elza Soares, lançado pelo Noize Record Club em 2023.
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