A história de “Chiquita Bacana”: o carnaval também mora na filosofia?

Para além da banana nanica: uma investigação sobre as relações entre o existencialismo, o feminismo e o vanguardismo das mulheres da família Bacana. The post A história de “Chiquita Bacana”: o carnaval também mora na filosofia? appeared first on NOIZE | Música do site à revista.

Mar 7, 2025 - 21:40
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A história de “Chiquita Bacana”: o carnaval também mora na filosofia?

Os livros de História tendem a cravar a imperatriz Josefina de Beauharnais, primeira esposa do imperador da França Napoleão Bonaparte, como a figura mais ilustre já nascida nas terras da Martinica. Mas essa região administrativa francesa situada no Caribe tem o dom de criar mulheres atemporais, pois é de lá mesmo que surge a personagem Chiquita Bacana

A figura tropicalíssima é fruto da marchinha de carnaval composta por Braguinha — também conhecido por João de Barro — e Alberto Ribeiro que, em 1949, ganha sua primeira e clássica gravação na voz de Emilinha Borba. Com “Chiquita Bacana”, Braguinha vence seu terceiro carnaval consecutivo, como reporta o blog Museu da Canção, e sua parceria com Ribeiro alcança sucesso internacional. A canção ganha versões gravadas na Argentina, Estados Unidos, Itália, Holanda, Inglaterra e França. 

De estrutura simplificada e tendo os costumes como temática, as marchinhas de carnaval, além de serem verdadeiros hits no estilo chiclete, podem ser consideradas como espécie de crônicas sobre a sociedade da época. Bastaram dois versos para que Braguinha e Ribeiro eternizassem uma discussão que vai do fashion à filosofia: “Chiquita Bacana lá da Martinica / Se veste com uma / Casca de banana nanica” e “Não usa vestido, não usa calção / Inverno para ela é pleno verão / Existencialista (com toda razão!) / Só faz o que manda o seu coração”. 

A composição é até hoje conhecida como “marchinha existencialista”. Nas principais fontes biográficas sobre os compositores, não há indicações de suas associações à corrente filosófica; mas não deve ser difícil imaginar que os ares franceses influenciavam os habitantes da Martinica.

Em linhas bem gerais, o Existencialismo é uma corrente filosófica que alavanca em meados do século XX na Europa, com destaque para a produção francesa. Influenciados pela fenomenologia, os existencialistas – com toda ou nenhuma razão —  afirmam que a essência humana é construída a partir de um processo que leva em conta sua vivência e suas escolhas, entendendo que o ser humano tem liberdade incondicional. 

No ano em que “Chiquita Bacana” é escrita, as marchinhas vivem seu auge no Brasil, enquanto a Europa vive um caótico cenário de pós-Segunda Guerra Mundial, em que grandes capitais, como Paris, encontram-se destruídas. Nesse contexto, no guarda-chuva do Existencialismo abarca-se o princípio da existência precedendo qualquer ideia de essência, a análise do ser um humano em seu todo, a modificação constante do que somos a partir da responsabilidade e compromisso de nossos atos, a racionalidade, a tomada de consciência, e a liberdade de escolha — tida, muitas vezes, como fardo. 

O registros apontam que a citação ao Existencialismo na letra da marchinha não passa de uma espirituosa menção a um termo em voga na época, já que a corrente e seus nomes de projeção — como Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus — marcavam presença na imprensa. Tal recorrência, ao que tudo indica, não busca uma reflexão em profundidade, mas sim trata o assunto como uma “nova tendência”, além de inspirar especulações e burburinhos sobre quais seriam suas perspectivas comportamentais, possíveis costumes exóticos e boêmios dos tais “adeptos ao Existencialismo”. 

Não podemos afirmar ao certo o aprofundamento teórico de Chiquita Bacana sobre a produção intelectual alinhada ao Existencialismo, porém, um aspecto pode ser no mínimo investigado. De acordo com essa linha de pensamento, a autenticidade é uma noção a ser apurada, sendo a forma pela qual o indivíduo não se deixa submeter meramente aos valores de uma sociedade e assumir um lugar na dinâmica social. Se nossas escolhas nos moldam e temos a liberdade para fazê-las, a autenticidade passa pelo compromisso diário de exercê-las de modo consciente. 

Sendo assim, a recusa de Chiquita Bacana a usar vestido, convenção social conferida às mulheres, e a usar calção, que poderia sinalizar uma transgressão, e sua decisão em optar por vestir-se com a casca de uma banana nanica é fruto de sua liberdade e expressão de sua autenticidade. Existencialista, ela compreende a si como um indivíduo em seu todo, logo, não ousaria sufocar aquilo que também lhe manda o coração. 

Em post publicado em 2010 no seu blog “365 Canções”, Leonardo Davino, pesquisador de Canção Popular e doutor em Literatura Comparada, contribui para a nossa conjectura ao intitular Chiquita como personificação da “potência libertária do Existencialismo” e como uma figura que experimenta a vida e dá valor a sua subjetividade, mesmo que utilizando da sátira ao fazer estabelecer um paralelo com a mesma liberdade que o contexto do carnaval permite. Uma mulher à frente do seu tempo e em exercício de emancipação. 

Essa interpretação pode ser reforçada com a análise da personagem que nasce como sua herdeira. A retomada tropicalista desse símbolo nacional é feita por Caetano Veloso em “A Filha da Chiquita Bacana”, canção lançada em um compacto em 1975 e incluída no disco Muitos Carnavais (1977), e que integra Orquestra Frevo do Mundo, Vol. 1, em versão gravada ao lado de Céu.

Eis o que vem na cabeça da cantora e compositora quando ela pensa na Chiquita: “Imagino mistura, bananas, feminismo, amor”. Ela dá ainda mais concretude a essa figura citando outra referência: “A mulher que definiu isso tudo da maneira mais clássica, que tomou tudo isso para ela, sem sombra de dúvida, foi Josephine Baker”, elege. 

“La Baker”, como era conhecida na França a atriz e cantora que foi vedete do teatro de revista, foi quem interpretou “Chiquita madame de la Martinique”, versão em francês para a nossa marchinha. Antes mesmo do surgimento da canção, ainda nos anos 1920, Josephine protagonizou uma ousada e icônica apresentação usando apenas uma saia de bananas. Fora dos palcos, ela era tão transgressora quanto: combateu o nazismo como espiã e atuou como ativista na luta pelos Direitos Civis aos negros nos Estados Unidos. 

Chiquita Bacana dialoga aí com algum imaginário de emancipação à moda dos trópicos, mas, de fato, não podemos cravar se ela era feminista ou não. Porém, quando se trata de sua filha, temos indícios mais palpáveis.

Na letra de Veloso há o atestado de filiação: “Eu sou a filha da Chiquita Bacana / Nunca entro em cana / porque sou família demais / Puxei à mamãe, não caio em armadilha / E distribuo banana com os animais / Na minha ilha, iê, iê, iê / Que maravilha, iê, iê, iê / Eu transo todas sem perder o tom / E a quadrilha toda grita, iê, iê, iê / Viva à filha da Chiquita, iê, iê, iê / Entrei pra ‘Women’s Liberation Front’”. O parentesco também é sustentado pela intertextualidade com a canção de 49, como analisado por Felipe Pupo Pereira Protta na tese “Caetano Veloso: Um camaleão na cena cultural brasileira”. 

A comparação entre as letras das canções permite a identificação de elementos comuns não só em relação às personagens, mas no contexto. “Chiquita Bacana” se vestia “com uma casca de banana nanica”, já “A filha” afirma distribuir “banana com os animais”. A personalidade forte, decidida e o contexto carnavalesco que se inserem em ambas as canções reforça a aproximação entre elas. 

A descendente de Chiquita pode ter enveredado por outro caminho a partir dos estudos da mãe. Filha de existencialista, chegar ao nome de Simone de Beauvoir não seria um desfecho tão incomum. Filósofa, intelectual e escritora, Beauvoir, que também foi companheira de Sartre, é uma das vozes proeminentes e clássicas do Feminismo. Na voz de Caetano, a filha declara “Entrei para a Women’s Liberation Front”.

Também conhecido pela sigla WLF, o Women’s Liberation Front nomeia o movimento de alinhamento político das mulheres e do intelectualismo feminista surgido nos anos 1960 e que se manteve atuante até a década de 80. Tendo como ponto de partida as principais nações industrializadas no lado ocidental do mundo, a iniciativa tomou proporções globais mantendo os esforços de caráter coletivo em prol da promoção de equidade entre os gêneros, e, por consequência, eliminação da opressão patriarcal. 

A filha da Chiquita demonstra, ainda, possuir personalidade forte, crítica e sagacidade – afinal, garante nunca entrar em cana ou em armadilha. A justificativa? Ter herdado a mesma autenticidade e perspicácia do berço, já que puxou à mamãe. Céu consegue identificar na personagem atitudes que dialogam com a emancipação e transgressão feminina. “Sem sombra de dúvida, Caetano, com sua sensibilidade e inteligência fantástica, traduziu isso bem”. A cantora ainda completa sua análise:

“Feminismo já era, por si só, transgredir. A música [“A Filha da Chiquita Bacana”] evoca libertação sem perder a classe. Ela faz porque quer e porque pode. ‘Eu transo todas sem perder o tom’, né?” 

Um frevo de mais de 40 anos de existência dialoga com uma marchinha de carnaval composta há 70 anos e ainda produz discussões e reflexões não só válidas para os tempos de hoje, como também sugestivas para os caminhos que ainda queremos trilhar. “Chiquita Bacana” e “A Filha da Chiquita Bacana” são símbolos progressistas que contribuem para um imaginário favorável do que pode ser o tal tornar-se uma mulher (como colocaria Simone de Beauvoir). Essa capacidade contribui positivamente para a atemporalidade das duas composições. Existencialistas ou não, usando vestido, calção ou apenas cascas de bananas nanicas, não há dúvidas: as herdeiras continuam por aí reinventando as formas de ser Chiquita Bacana. 

Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Noize que acompanha o vinil de “Orquestra Frevo do Mundo Vol. 1”, lançado em 2020.

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